XXXV - Nescit Vox Missa Reverti

O barco viajava a toda a velocidade rumo a Roma. Quando chegassem, teriam de ter todo o cuidado, pois as tropas romanas estavam preparadas. Só havia uma solução para conseguirem escapar: Juristus.
Juristus tinha ficado para trás, devido a uma queda de uma escada, enquanto treinava sapateado, que lhe imobilizou o ombro e o afastou do Pró Evolutionus MMVIII. Entretanto, aproveitara para tentar descobrir mais sobre as rotinas de César e para se infiltrar nas mais altas e exclusivas esferas do Senado. Não sabendo o que se passava com Plínio e os restantes (grupo que ele denominava de “Ursinhus Carinhosus”), aguardava ansiosamente por noticias deles.
Qual não foi o seu espanto quando, numa calma manha em que redigia mais uma ou duas leis quando lhe bateram à porta.
- Já vai, vá lá ver, que um gajo já não pode legislar como antigamente.
Juristus assusta-se quando, mal abre a porta, entra um indivíduo com uma capa preta, e se senta no primeiro cadeirão que encontra.
- Ah, isto é que é conforto. – Diz o estranho indivíduo.
- Mas que é isto?! – Juristus desembainha a sua espada. – Identifique-se.
- Oh, mas tu não me reconheces? Sou eu, o anjo na terra.
- Michael Landon?! Sou um grande fã Shõr Landon!
- Geraldus! Sancto Geraldus pá! – Geraldus tira a sua capa e revela-se a Juristus.
- Epá… Que susto. Entras na casa de um gajo assim, armado em infiltrado, queres me matar do coração?
- Não, nada disso. Mas é que eu… Como é que hei de explicar… Sou um mestre na arte da infiltração, do passar despercebido.
- Ai sim?
- Nem mais. Repara: uma vez, atenção, não vou te contar os detalhes para teu bem, tive de andar escondido durante uns tempos.
- Pois.
- Digamos que envolveu vinhas e uma carroça.
- Certo…
- De qualquer forma, eu andava sempre escondido. Atrás de pilares, por entre a multidão, eu era como o vento.
- Chato e frio?
- Não! Mortífero e invisível.
- Ah.
- Pois. Enfim. Ser bom tem destas coisas não é
- Acredito, acredito… Olha, já agora, o que é que vieste cá fazer? O Plínio e os outros?
- Ah catano! É isso! Eu vim cá pedir te ajuda para nos levares para um qualquer esconderijo secreto.
- E não dizias nada?!
- A conversa estava agradável: Bem, sendo assim, podemos contar com a tua carroça?
- Pá, não.
- Não, como?
- Não porque me caiu uma árvore em cima da carroça, fruto da intempérie.
- Que chatice ahn? E não me digas que…
- Reportei ao seguro, sim.
- Epá, isso é do pior meu. Eles atam-te a uma cadeira, vestem-te de cabedal e introduzem artefactos manhosos nos teus orifícios pá, e ainda te vendam a boca e …
- Geraldus, isso são os Sado-masoquistas.
- Ah. Então os seguros são..
- Aqueles gajos a quem tu pagas uma batelada de dinheiro e que depois, quando há problemas, não te ajudam em nada. Mas teve que ser.
- Sabes, eu sou contra os seguros.
- És?
- Sou. E o Menditus tem aquele seguro de saúde, pá, aquilo não me convence sabes?
- Não?
- Não. E eu digo te porquê. Em vez de pagar o seguro, junto o dinheiro. Depois quando há problemas, gasto o que for preciso. Mas fico sempre a ganhar. Tal como as seguradoras.
- Ah.
- Pois. Eu sempre te disse que era especial.
- Sim. E agora, podemos falar do Plínio?
- Ah1 Pois é! Temos de ir buscá-los ao porto!
- Vamos lá que eu arranjo uma carroça da empresa!
Lá seguiram os dois, rumo ao porto onde estava ancorado o barco que trouxe Plínio e os seus companheiros da Sardenha. Quando Geraldus conseguiu infiltrar-se no barco sem dar nas vistas, fez sinal a Juristus para que este entrasse à vontade, porque a costa estava livre.
- A costa está livre, Juristus! A costa! – Geraldus fazia com a mão a forma do porto e da enseada onde o barco se encontrava. – Está livre, percebes? A costa? A costa está livre! Tipo, isto é a costa, e está livre!
Juristus não ligou e entrou na cabine do barco, onde todos esperavam impacientemente.
- Geraldus! Onde é que andavas?! Nem para uma revolução chegas a horas! – Menditus saltou do seu lugar desesperado. – Não respeitas os teus amigos!
- Eu não tenho amigos… - Diz Geraldus calmamente. – Apenas conhecidos. Sou um gajo muito selecto.
- …
- Bem, - Juristus intervém. – E que tal sairmos daqui e irmos para um local sossegado e podermos, enfim, conspirar?
- Parece-me uma excelente ideia. – Gaius levanta-se e faz sinal para seguirem, e todos o seguem.
Juristus guiou a sua carroça até a uma zona segura, onde possuía algumas propriedades. Juntaram-se todos numa sala, e, depois de comerem alguma coisa, prepararam-se para discutir o assalto final a César.
O debate foi intenso. Existia uma ala mais conservadora, de Menditus, Gaius e Juristus, que defendiam uma entrada e actuação estratégica, enquanto que havia uma ala radical, composta por Plínio, Edgar e Salvadorus, que defendia uma acção pela força. Já Geraldus, representava a ala abichanada, não dando qualquer tipo de opinião válida e concreta.
Depois de muito discutirem, chegaram à conclusão de quem seriam os potenciais candidatos para sucederem a Júlio César. Menditus arranjou Ionus McCainus, veterano de guerra. Juristus arranjou Hilaria Clintonis, ex-primeira dama, e Geraldus apareceu cmo um candidato surpreendente: Barackus Obamas.
- Rapazes… - Diz Gaius, ponderado. – Temos aqui um problema… Se votarmos na Hilarias somo racistas porque não votamos no Obamas.
- Certo… Mas se votarmos no Obamas, - Diz Edgar. – somos machistas.
- Então e se votarem no McCainus? – Pergunta Salvadorus.
- São anormais. – Geraldus levanta-se e caminha à volta da mesa. – Já olharam bem para o McCainus? O homem parece um ciborgue!
- Ciborgue? – Pergunta Menditus.
- Não interessa, não vou explicar nada a agora. Ele está fora disto pá. Esqueça o McCainus. O Obamas é o caminho a seguir.
- Eu acho que ele não é negro o suficiente… - Diz Menditus, desconfiado.
- Não é… Não é negro o suficiente?! – Geraldus estava indignado. – Obamas, chega aqui! Estão a ver? Vejam. – Geraldus junta o seu braço ao braço de Obamas. – É mais negro que eu é negro!
- É um ponto de vista, mas…
- Mas? Ele não se vê sem luz! Menditus, apaga as velas…
- Oh Geraldus, não achas que..
- Menditus, apaga as velas!
Menditus apaga as velas e ficam todos em silêncio.
- Vêem o Obamas? – Inquire Geraldus.
- Não. – A resposta sai em coro.
- Lá esta´!
- Oh Geraldus, mas eu não te vejo a ti! Nem a ti nem a ninguém!
- Mas mesmo se visses não o vias a ele! É negro pá Ele nasceu em África.
- Por acaso até nasci em Roma e…
- Não nasceu nada, ele está a brincar. A mãe dele chama-se Matumba e o pai chama-me Dindi! É africano.
- Por acaso o meu pai chama-se Caius e a minha mãe chama-se Catilina.
- Isto é ele a delirar por causa do sol africano, não liguem. – Geraldus ia fazendo sinal a Obamas para se calar. – Ele vai ser o nosso candidato. E eu vou ser o governo sombra.
- Logo vi.. – Plínio abanava a cabeça em sinal de desaprovação.
Voltaram a sentar-se à mesa e planearam em detalhe o ataque a Roma. Seria em breve e o nervosismo ia crescendo dentro de cada um deles. Sabiam que estavam destinados a grandes coisas. Sabiam igualmente que não iria ser fácil, que tudo e todos estavam contra eles… Mas, sentiam que estavam numa época especial, num momento crucial da história. As suas acção podiam mudar todo o rumo de uma cidade. De um império. Da História.

XXXIV - Ad Mala Facta Malus Socius Socium Trahit

O modo de saída seria óbvio. Menditus, Plínio e Geraldus iriam cortar umas árvores, depois Gaius, através de avançados cálculos matemáticos, iria construir as bases para uma embarcação durável, capaz de os levar até ao próximo porto civilizado, onde pudessem partir para Roma para, finalmente, acabarem com o reinado de César.
Menditus e Geraldus opinavam sobre que árvores haviam de cortar, enquanto Plínio ia cortando desalmadamente.
- Já davam uma ajudinha não? – Plínio nem sequer olhava para eles, tão compenetrado que estava a cortar os coqueiros.
- Não… - Geraldus leva a mão ao queixo. – Sabes, isto não é qualquer árvore que se corta. É preciso critério.
- Nem mais. E o problema é que não estamos bem de acordo quanto ao critério, Plínio.
- Já sei, Plínio, estás a ver aquele coqueiro ali mais à frente. Vai lá cortá-lo. É grande e forte. Já que estás numa de cortar coqueiros à maluca, que seja aquele.
Plínio seguiu as indicações de Geraldus, enquanto este e Menditus continuavam a discutir a problemática da resistência da madeira à água salgada.
Passados alguns minutos, quando os dois já se encontravam sentados no chão em amena cavaqueira sobre todos os assuntos menos árvores, um barulho estranho fez com que se levantassem e fossem ver o que se passava com Plínio. Ao espreitarem por entre as árvores, viram Plínio ser abordado por uns sujeitos armados com espadas. Menditus pediu silêncio a Geraldus, para tentarem ouvir o que se passava.
Plínio estava a ser acusado de derrubar árvores ilegalmente e seria, por isso, preso numa prisão de alta segurança. Ficaram a saber que se encontravam na Sardenha, o que, por um lado, até era bom sinal. Estavam perto de Roma, depois de se livrarem desta embrulhada chegariam em poucos dias a casa.
- Vá, vamos lá buscar o Plínio e vamos embora.
- Não pode ser, Geraldus. Eles são mais que nós e nós não temos armas!
- Menditus, mas eu sou um homem! Tenho que salvar o meu discípulo.
- Geraldus, não é altura para mentiras. Vamos aguardar e segui-los. Assim, pode ser que possamos, enfim, “pedir emprestado” uma embarcação para seguirmos para Roma.
- Sim, de facto seria imprudente avançar… Mas vamos salvar o Plínio, ou não me chame eu Zuleida!
- … - Menditus abana a cabeça de modo condenatório. – Tu chamas-te Sancto Geraldus.
- Ah. Pois. Mas, vamos salvá-lo. É isso que importa!
Voltaram para trás, foram chamar Salvadorus, Edgar e Gaius e seguiram no encalce dos captores de Plínio. Quando chegaram ao local onde Plínio iria ser presente a um juiz e preso, Edgar colocou a capa preta e foi assistir ao julgamento. Assim, conseguiria saber o local onde Plínio seria preso, podendo assim libertá-lo e seguirem o seu caminho.
O julgamento corria serenamente e Plínio, não sabendo que Edgar estava a assistir ao julgamento, estava destroçado pelo facto de os seus amigos não o terem salvo. No momento da leitura da sentença, o terror apoderou-se da sala:
- Pelo crime de atentado à natureza, condeno o arguido Plínio Plagius à pena de morte, na penitenciária de Foxus Rivus.
- Foxus Rivus?! – Perguntaram os presentes. – Que Zeus tenha pena da tua alma.
- Então? – Zeus levanta-se na sala. – Porque é que têm que trazer o meu nome sempre à baila. Estou de folga hoje pá!
Edgar saiu sorrateiramente da sala e apressou-se em contar aos outros o que se tinha passado. A reacção foi naturalmente de choque e apreensão.
- O que fazemos agora?
- Algum de nós tem tirá-lo de lá… - Menditus olhava à sua volta.
- Eu vou! – Geraldus deu um passo em frente.
- Tu? – Pergunta Gaius.
- É simples. Eu arranjo maneira de se preso e ir para a mesma prisão do que ele. Depois ajudo-o a sair e fugimos para Roma. Que tal?
- A ideia é boa na teoria… Mas será difícil.
- Não há problema. – Geraldus estava decidido. – Confiem em mim.
Geraldus seguiu para o centro da cidade, com Edgar por perto a vigiá-lo, e procurou algo que pudesse fazer para que fosse preso. Viu a loja Studius Casis, e entrou. Pensou que se a assaltasse e ferisse alguém que iria certamente ser preso.
Aproximou-se do balcão, e quando encarou o funcionário o tempo parou: era uma rapariga, um pouco mais baixo que ele, e, apesar de não ser uma beleza exótica, havia algo nela que lhe agradava muito.
- Olá…
- Olá… - Respondeu a rapariga, com um sorriso enternecedor.
- Eu vinha assaltar a tua loja e…
- O quê?! – A rapariga ficou sobressaltada.
- Não! Não! Não era isso que queria dizer! – Geraldus juntava as mãos como se pedisse perdão. Eu queria uma er… - Viu um expositor com porta-chaves. – Este.
- Este? – A rapariga olha para o expositor. – Estão aqui dezenas deles.
- Ah, bom, então… Er… Queria, pode ser este aqui-
Ela tira o porta-chaves e olha para ele.
- “Sou a Rainha da Noite”? É este?
- Não! O do lado!
- “Homem Procura-se”?
- Não. Esqueça. Eu vim cá mesmo assaltar a loja. Eu sei que parece estranho, mas é que o meu amigo Plínio está na prisão e eu tenho que o safar de lá. Eu não sou homem para roubar.
- Isso já vi eu. A parte do homem, claro.
- Pode auxiliar-me? Nós “simulamos” um roubo, e uma morte de alguém. Pode ser?
- Não sei porquê mas algo me diz que devia confiar em ti. Sou a Michelle. Michelle K.
- Que nome exótico. Sancto Geraldus, Menino, Gladiador.
- Mujto prazer. Podes ficar só aqui na caixa um bocado para eu ir chamar uma amiga. Para simularmos o assassinato.
- Ah, sim, claro. Eu trabalho numa livraria, isso caixas é comigo. Geraldus ficou lá a aguardar pacientemente. Começou a olhar à volta a ver os produtos, até que foi interrompido por uma feminino e sensual “Bom dia”.
- Bom… Bom dia… - Geraldus não queria acreditar na beleza que tinha à sua frente.
- Podia-me trocar esta nota de seiscentos sestércios. Sei que parece grande, mas, se formos a ver, não é assim tão grande.
- É como eu. Quer dizer. Não. Raios. Sim. Eu troco-lhe.
À medida que Geraldus ia tirando as moedas da caixa a rapariga ia falando e tocando-lhe nas mãos enquanto tirava as moedas. Quando Geraldus se despediu dela, viu que tinha esvaziado completamente a caixa.
Michelle K .voltou e ficou espantada ao ver a caixa apenas com a nota de seiscentos sestércios.
- O que é que se passou?! O meu dinheiro?!
- Ah, veio cá uma rapariga simpática e eu troquei-lhe uma nota… Porquê?
- Desapareceu o meu dinheiro todo! Querias ir para a prisão, então boa sorte!
Michelle K. chamou os guardas e estes levaram Geraldus para o tribunal. Edgar estava novamente sentado nos lugares traseiros do tribunal, à espera da sentença.
- Geraldus, está condenado por roubo a passar uma semana em Caxius.
- Caxius? Mas eu quero ir para Foxus Rivus!
- Foxus Rivus? Mas isso é uma prisão de mulheres.
- De mulheres? É lá que está um amigo meu!
-Ah, a “Maria Alice”? Sim, está lá. Bem… Se te queres juntar a ela… “Anastásia”, podes ir ter com a tua amiga. Para Foxus Rivus, já!
O martelo bateu com estrondo na mesa, enquanto Geraldus era levado pelos guardas. Ao sair, fez sinal a Edgar para começar os preparativos para a saída para Roma.
Ao chegar à prisão, Geraldus tratou logo de procurar Plínio, mas não conseguiu encontrá-lo. Estava na hora de recolher à cela, teria de esperar pela manhã seguinte. Conheceu o seu companheiro de cela, Bellicus, que lhe pareceu um rapaz responsável que até se ofereceu para aquecê-lo durante a noite, o que Geraldus recusou por até estar bom tempo, apesar de agradecer a atenciosidade.
Na manha seguinte procurou Plínio no pátio. Viu-o ao longe, a levantar pesos. Quando chegou ao pé dele este não queria acreditar.
- Geraldus! O que fazes aqui?!
- Vim salvar-te. Como sempre.
- Porque é que não me salvaram logo? – Plínio estava incrédulo.
- Então… Porque assim nós conseguimos preparar a partida para Roma sem correr o risco de tu começares a filosofar e coisas assim do género. É meramente uma questão de sanidade mental.
- … Olha, temos de nos separar a guarda. Os guardas estão a desconfiar. Encontra-te comigo aqui depois do almoço.
Assim fizeram. Umas horas depois, lá estavam eles no mesmo local, prontos para delinear o plano de acção.
- Olha lá… O meu companheiro de cela., o T-Bagus, parece ser um rapaz simpático.
- O Bellicus, o meu companheiro, também. É uma prisão decente, esta.
- É, .não é? Vê lá que o T-Bagus falou com o Bellicus e estão a pensar em fazer “swingus” connosco.
- “Swingus”? – Inquire Geraldus. – O que é isso?
- Não sei, deve ser algum desporto. Eu acho que devíamos aceitar.
- Plínio… Vamos ali atrás do pavilhão. Tenho uma coisa para te mostrar…
Quando chegaram ao local, Geraldus começou a tirar a camisola.
- Geraldus! Se pensas que eu vou “sentir” algum dos teus músculos estás engando, e…
- Cala-te…. E vê.
Tirou a camisola totalmente e Plínio pôde vislumbrar a imponente tatuagem que ocupava todo o seu tronco.
- Geraldus… Isso é um mapa da prisão para que possamos fugir?
- Não. É uma borboleta. É gira, não é?
- Uma borboleta?! Porque não tatuaste o mapa da prisão com a rota da fuga?!
- Epá, eu até fui lá com esse intuito, mas esta borboleta… Ficava bem com o meu "cai-cai" novo... Não sei, parece que chamava o meu nome. É a “Maria”.
- … E agora o que é que vamos fazer?!
- Fugimos de qualquer forma. Estou farto de aqui estar!
- E a ideia do “swingus” não me parece nada bem!
- Vamos fugir daqui!
Plínio e Geraldus começaram a correr e a derrubar os guardas, abrindo caminho até ao portão principal da prisão. Quando saíram, já tinha Menditus numa carroça à porta, pronto para levá-los ao porto, onde os restantes elementos aguardavam num barco, entretanto dominado por Salvadorus, que incapacitou toda a tripulação em pouco mais de trinta segundos com a sua cover do “If You Tolerate This” dos Manicus Stritus Prichus.
- Para Roma! Rápido! – Gritou Plínio. – César! O teu final aproxima-se!

XXXIII - Ab Aeterno

Voltaram a entrar no barco, teriam de seguir rapidamente para Roma. Os guardas viriam certamente atrás deles, e em maior número. Não poderiam arriscar tudo agora.
Já com o barco em andamento, Menditus não resistiu em perguntar a Plínio quem era a tal ajuda de peso de que ele tinha falado.
- Ah… Isso…
- Então?
- Epá… É que… Sinceramente já não me lembro.
Ficaram todos boquiabertos a olhar para Plínio.
- Mas não te lembras, como? – Inquire Edgar.
- Pá… Não me lembro. Desde ontem à noite até hoje parece que já passaram uns seis meses. Estranho não é?
- Agora que falas nisso, - Intervém Geraldus. – Eu também estou com essa sensação. Se não soubesse que tinha passado apenas uma noite diria que tinham passado alguns meses, sim. Mas, oh Plínio, tu falavas de uma coisa em grande, de certo que te lembrarás!
- Não. Juro que não me lembro. É que nem faço a mínima ideia.
- Bem, neste caso, - Menditus parecia certo do que ia dizer. – O que temos a fazer é…
De súbito uma onda enorme quase tombou o barco, atirando todos os que se encontravam sentados a conversar para o lado oposto do barco.
- Que raio? – Gaius estava perplexo. – O tempo estava óptimo, o mar calmo, de onde veio esta onda?
- Muito estranho. Cá para mim isto é o tal aquecimento global que aquele chato do Al Gorus anda sempre a falar.
- Gaius… Olha para trás de ti.
A expressão de Gaius alterou-se por completo. No horizonte, uma única nuvem preta preenchia todo o céu, rodando sobre si mesma, criando um furacão aterrador.
- E agora? – Pergunta Menditus, assustado.
- Segurem-se. Vou tentar estabilizar o barco. – Edgar parecia saber o que fazer.
- Sim, tu que és descendentes dos Vikings, quiçá até dos Children of Bodomis.
A ondulação começou a subir cada vez mais, enchendo de temor os heróicos companheiros. O vento soprava cada vez mais forte, como se tivesse saído da boca do próprio Diabo.
- Não vamos aguentar! – Grita Menditus, completamente encharcado, tentando manter o equilíbrio. – Cuidado!
Uma vaga com cerca de quatro metros de altura atinge um dos lados do barco, fazendo com que este virasse e atirasse todos à água.
Foram virados e revirados pelo mar tumultuoso, fazendo com que todos, um a um, fossem perdendo os sentidos. Para os que conseguiram ainda um momento de lucidez, um ténue segundo em que puderam pensar, apenas um pensamento passou nas suas mentes: a morte.
Quando o primeiro raio de luz fez cócegas nas pálpebras de Plínio Plagius, este pensava estar a receber as boas vindas ao Céu. Levantou-se, cambaleando, e, vislumbrando toda a beleza que a praia e a costa lhe oferecia, começou a correr e a agradecer a existência do Céu.
- Sim! Deus é grande! Que belo paraíso me oferece e…
Plínio tropeçou e enfiou a cabeça na areia.
- Au! Então pá?!
Plínio levantou a cabeça e olhou para trás. Cuspiu a areia que tinha na boca e viu Sancto Geraldus, o seu professor, estendido na areia a apanhar banhos de sol.
- Sai lá da frente que estás a estragar o meu bronze. Quando voltar a Roma quero estar em grande.
- Geraldus! Também morreste pá!
- Não morri nada, estás parvo? Achas que eu, um anjo na terra, um místico, poderia morrer?
- Mas nós afogámo-nos todos…
- Perdão, TU afogaste-te. Tu e os outros. Eu nadei graciosamente, aliás, sou dos três melhores do mundo a nadar, seguramente, até à costa e agora estou aqui à espera que o Sol me deixe bem bronzeado.
- Geraldus, estás em negação. Nós morremos. Olha em teu redor. Não há nada. Não há ninguém. E este sitio, é paradisíaco.
- Não estamos mortos, Plínio… Estamos apenas… PERDIDOS.
Geraldus e Plínio começam a olhar à sua volta.
- Porque é que raio ficou tudo escuro e surgiu um pedaço de orquestra?
- Não faço ideia… - Plínio começou a andar em direcção ao mar. – Será que o nosso braço deu à costa? E os outros?
- Isso, meu caro. – Diz Geraldus, enquanto pousa a mão no ombro de Plínio. – Só Deus saberá.
A pouco mais de um quilómetro dali, Menditus e Salvadorus acordavam praticamente ao mesmo tempo. Deram graças por estarem vivos e começaram a procurar sobreviventes. Passado pouco tempo encontram Edgar.
- Olhem lá, - Diz Edgar. – Vocês por acaso já repararam que, quando alguém diz PERDIDOS surge um bocado de música? Oh, lá está!
- Pois, - Retorque Salvadorus. – Já tinha reparado.
- E, ainda mais estranho, - Continua Edgar. – Vi um urso!
- Era o Plínio!
- Não, era mesmo um Urso. Polar, ainda por cima,
- Era o Plínio! Os pelos ficaram brancos por causa do frio!
- Menditus, era mesmo um Urso Polar. Eu sei que querias que o Plínio estivesse vivo, mais o mais provável é que ele tenha perecido no naufrágio… Tens de ser forte Menditus.
- Que barulho é este? – Um som estranho assusta os três homens.
- Certamente que este barulho terá algum signficado importantíssimo! – Edgar parecia entusiasmando.
- Não, desculpem… - Salvadorus afaga a barriga. – Era apenas a minha barriga, estou com uma fome que não se pode.
- …
Começaram os três a caminhar junto à água. Pensaram que, melhor do que se aventurarem pela terra adentro, correndo o risco de encontrar povos hostis, seguiriam a linha do mar, esperando ver algum porto ou algum sinal de civilização.
Entretanto, Plínio e Geraldus faziam exactamente o oposto, aventurando-se pelo mato denso.
- Eh, oh Plínio, chega lá aqui. – Geraldus estava dobrado a olhar para trás de uns arbustos. Vê lá isto.
Plínio chegou perto de Geraldus e ficou espantado com o que via diante dos seus olhos. Era uma espécie de escotilha, amarela.
- Oh Geraldus. Eu não quero ser chato, mas olha que isso não serve para nada.
- Não serve? Mas… É uma escotilha! Amarela! No meio da floresta!
- Não pá, lamento, parece-me que isso não serve mesmo de nada. Um mero McGuffin
- Um quem?
- McGuffin. Quando algum criador usa algo só para fazer a história avençar, mas que, no fundo, não serve de nada.
- Olha que não, cheira-me que isto é importante.
- O que te cheira é aquela nuvem de fumo. Vê! – Geraldus aponta para o horizonte.
Os dois começam a correr em direcção á origem do fumo, ignorando que este foi iniciado por Menditus, Edgar e Salvadorus.
- Salvadorus… - Menditus estava incrédulo. – Achas que esta era mesmo a melhor altura para comeres javali assado?
- Eu sei, eu sei, mas estava cheio de fome!
Plínio e Geraldus corriam o mais que podiam. Quando se aproximaram o suficiente para discernir, Plínio parou subitamente de correr. Geraldus perguntou-lhe o que se passava, mas este não respondeu. Estava a ter um flashback. Subitamente, Plínio abanou a cabeça, como se despertando dum sonho e voltou a correr, deixando Geraldus parado.
- Plínio! Tiveste outro flashback?!
- Tive. Já me estou a passar com isso.
- Esta ilha é mesmo estranha, também já estou a passar com isto. E parece-me que esta ilha tem poderes mágicos.
- Como assim?
- Não sei, é uma sensação que tenho. Acredito que se um coxo ou um cego pisassem esta ilha ficassem logo curados das suas maleitas.
- Achas?
- Sim. E só não te tornou um homem porque, magia magia, milagres à parte não é?
- … Vamos mas é ver de onde vem o fumo!
Quando chegaram à clareira não queriam acreditar nos seus olhos. Viram Edgar e Menditus sentados de braços cruzados enquanto Salvadorus empilhava pernas de javali completamente ruídas.
O facto de toda a gente estar viva foi um motivo de celebração. Comeram todos Javali, pelo menos o que Salvadorus deixou que os outros comessem. Depois, iriam descansar. Teriam de encontrar uma saída. Roma esperava por eles.

XXXII - Jam Satis Est

Estava decidido. Iriam voltar a Roma e iram terminar isto tudo. Plínio já estava farto de andar para trás e para frente, logo ele que adorava viajar. Queria assentar, ter ursinhos de peluche, perdão, filhos, deixar crescer ainda mais a barba e dedicar-se pura e exclusivamente a enganar as pessoas com retórica incoerente, perdão, a iluminar o povo com filosofia.
Sem Salvadorus alem da óbvia perda de força em combate, perdiam também em termos estratégicos, pois Salvadorus era um verdadeiro Sun Tzu romano.
Secaram-se, sacudiram as roupas e caminharam até a aldeia mais próxima, onde conseguiram arranjar uma carroça para os levar de novo para Roma. Combinaram encontrar-se de madrugada, assim que os primeiros raios de sol fossem visíveis no horizonte, para seguirem o seu caminho. Cada um aproveitou a noite para fazer meditar. Plínio recordava-se de Salvadorus, e jurava vingança. Edgar treinava feitiços enquanto Gaius resolvia complicadas equações sobre a possibilidade de Geraldus vir a assentar. Já Geraldus, foi atraído para uma clareira num bosque ali perto, por uma luz verde. Era Diana, a Deusa da Caça.
- Geraldus…
- Sim, Deusa.
- Já passaram meses e meses. Nada está resolvido. Roma ainda está entrega a César, Viçosus e aos outros asquerosos.
- Então isso tem uma explicação, ora bem, então é o seguinte…
- Silêncio! – Interrompe a Deusa. – Tens uma semana, Sancto Geraldus, uma semana.
- Mas, Deusa, sejamos realistas! Não temos a mínima hipótese! O Salvadorus foi-se, o Menditus está casado e gordo, o Plínio só pensa nas filosofias, o Edgar e o Gaius já tivera melhores dias, dos heróis só sobro eu. Tudo bem, Deusa, tudo bem. Já sei que vai dizer ah e tal mas só o Geraldus chega, mas deixa-me que a corrija. Só eu não chego.
- …
- E há mais.
- Há?
- Há. Repare, Deusa, Deusinha, se a posso tratar por Deusinha…. Precisamos de algo em grande para conseguirmos esta façanha…
- Algo em grande tipo o quê?
- Sei lá, tipo… Assim só por alto, só uma ideia… Eu transformar-me numa espécie de anjo na terra, com o poder da cura!
- Ah. Estou a ver. Queres ser tipo um anjo na terra com o poder da cura e da resolução de querelas entre habitantes do interior americano, tipo Michael Landon?
- Tipo quem?
- Esquece.
- Hmmmm… Mas posso ter esse poder?
- Bem, pode ser. Mas, tem cuidado com esse poder. Não deixes que te controle.
- Ora essa, eu aguento. Manda vir! Quero dizer, se faz favor oh Deusa!
- Toma… – A deusa une as mãos acima da cabeça e cria uma bola branca, com uma luz de tal intensidade que Geraldus teve de fechar os olhos.
A bola viaja pelo ar e penetra no corpo de Geraldus, e agora eram as suas mãos e os seus olhos que brilhavam
- Oh… Oh Deusa..: Eu sinto-me poderoso e tal, mas isto vai brilhar sempre assim? É que eu para dormir bem tenho que estar na escuridão total!
- Isso passa Até à próxima, Geraldus, e para teu bem que a próxima vez seja para festejar a vitoria em Roma!
- Assim será, oh Deusa!
Geraldus voltou para o aldeamento, para tentar descansar um pouco antes de seguirem para Roma.
Tal como tinham combinado, assim que os primeiros raios de sol surgiram, envergonhados, rompendo pelo horizonte, encontraram-se junto à fonte que se encontrava bem no centro da aldeia.
- Então, tudo pronto para a viagem? – Diz Geraldus, sorridente.
- O que é que te deu? – Pergunta Plínio, desconfiado.
- Nada, nada. Estou apenas bem disposto. Ou um homem já não pode estar bem disposto pela manhã?
- Pode. Mas eu estava a falar contigo, essa parte do homem não encaixa.
- Já vi que estamos engraçadinhos logo pela manhã.
. Vá, vocês os dois acalmem-se e ajudem a carregar os mantimentos. – Intervém Gaius.
Iniciaram a viagem, calmamente, aproveitando para conversarem e tentarem, de algum modo, pensar num plano que pudesse levá-los ao sucesso.
Lembraram-se, e bem, de deixar a carroça ainda longe da cidade, usando o sistema de esgotos onde lutaram com a hydra, para ir até à biblioteca de Menditus e aí conseguirem partir para a ofensiva.
Menditus ficou desfeito quando viu o estado em que se encontrava a sua livraria. Tinha sido pilhada e vandalizada. Ficou desfeito, mas assim que a sua esposa anunciou que iria aproveitar para se banhar nos seus aposentos especiais, ele esqueceu logo tudo.
Gaius contactou Juristus, que ainda se encontrava infiltrado junto de Júlio César, e qual não foi o espanto deste quando Juristus lhe disse que Salvadorus estava vivo e tinha resistido aos ferimentos, encontrando-se preso em Alcatrazius, uma prisão de alta segurança ao largo de Roma, numa pequena ilha.
- Mas isso é fantástico! – Diz Plínio, entusiasmando.
-É notável… - Acrescenta Edgar. – A sua resiliência é desumana, é um semideus este Salvadorus.
- Mas, não se excitem demasiado. – Gaius parecia preocupado. – o Juristus disse-me que ele está em perigo de vida se não for curado rapidamente.
- Temos de agir de imediato! – Plínio não conseguia esconder o desejo de vingança.
- Calma, Plínio, calma… Não acredito que Juristus tenha recebido esta informação por acaso. Deve ser uma cilada.
- Ainda assim… Não podemos deixar o nosso companheiro para morrer! – Plínio deu um murro na mesa. Vamos para lá já!
Não valia a pena tentar impedi-lo. A determinação dele era inigualável. Preparam-se o melhor que conseguiram, reuniram as poucas armas que ainda tinham, e rumaram a Alcatrazius.
Edgar conseguiu conjurar um feitiço potentíssimo, que tornou-os a todos, e até ao barco em que viajavam, invisíveis.
- Oh Edgar, porque é nunca te lembraste disto antes? – Geraldus não escondia a sua satisfação em estar invisível. – O que eu podia já ter feito e visto, especialmente visto, se tivesse este poder. Mas isto é maravilhoso!
- …
- Nem num momento de tensão destes tu deixas de dizer parvoíces, oh Geraldus. – Responde Menditus.
- Tem calma Menditus, vais ver que tudo corre bem. Aliás, eu tenho a certeza. Tenho um truque na manga. Na manga não, na mão mesmo.
- Não me digas que hoje à noite recebeste uma visita da senhora Palma e das suas cinco filhas…
- Não, nada disso. Quer dizer, isso também. Mas não é a isso que me estou a referir.
Chegaram à margem da prisão, e tal como nos mapas que conseguiram arranjar, já encontraram a entrada do esgoto que os levaria à cela de Salvadorus.
- Agora temos de ter cuidado, o feitiço de invisibilidade desaparece assim que entrarmos nos esgotos. – Avisa Edgar, enquanto ajuda Plínio a descer do barco.
- Tudo bem. Tu e o Gaius fiquem aqui atentos e preparados para fugir caso as coisas corram mal. Connosco ou sem nós, se os archotes daquela torre mais alta forem apagados, abandonem a ilha e digam ás nossas caras metades que o nosso amor é eterno.
- Oh Menditus, mas só tu é que és casado.
- Ah ok, então esquece lá os outros e diz isso à minha esposa.
Plínio, Geraldus e Menditus entraram pelos esgotos e foram procurando as saídas certas, para conseguirem chegar à cela de Salvadorus. Estava tudo calmo. Conseguiam ver as rondas dos guardas, estes pareciam não suspeitar de nada. Se fosse tudo planeado, eles deveriam apresentar alguns sinais de nervosismo, mas, à primeira vista, pareciam estar descansados. Teriam de ser rápidos, pois a fuga teria forçosamente de ser feita durante a noite, para serem protegidos pela escuridão. Chegaram á cela onde estava Salvadorus e ficaram impressionados com o estado em que este se encontrava. Olharam para os seus olhos e viram que aqueles eram os seus últimos instantes de vida.
Soltaram a grade que dava acesso ao esgoto e Geraldus ergueu-se e ficou frente a frente a Salvadorus. Geraldus ficou a olhar para ele, enquanto puxava as mãos atrás.
- Porque é que ele não o desata?! – Plínio estava bastante nervoso.
- Não percebo! O que é que ele está a fazer?!
Os dois tentavam chamá-lo baixinho, temendo ser ouvidos, mas não estava a resultar. Nisto, surge uma luz esverdeada que os encadeia momentaneamente. Era a Deusa Diana.
- Deusa, vejo que vieste em nosso auxílio! – Exclama Geraldus.
- Sim. Agora Geraldus, usa o teu poder em Salvadorus. Cura-o, meu anjo.
Geraldus elevou os braços acima da cabeça e depois tocou em Salvadorus. Nada aconteceu. Tentou novamente e única reacção foi um gemido gutural de Salvadorus, acompanhado de uma queda de sangue
- Então Geraldus? Cura-o. O quê? Não consegues? Oh… - Disse a Deusa, num tom jocoso.
- Mas…
- Mas o quê? És tão ingénuo. Achavas mesmo que eu te ia dar assim o poder sem mais nem menos? Agora tenho de a ti e aos teus companheiros onde eu quero!
- Não sabes o que dizes. Eu estou sozinho.
- Ah sim? – A Deusa ergue os braços e faz Menditus e Plínio levitarem através do buraco do esgoto. – Já terminaram o vosso namoro?
Plínio tenta atacar a Deusa mas é impedido por Menditus.
- Acalma-te, Plínio, não vale a pena.
- Pronto, agora que estão todos aqui deixem-me chamar o convidado especial de hoje à noite…
A Deusa estalou os dedos e surge Viçosus, com o seu habitual cheiro a enxofre e capa negra.
- Parece que a colheita foi boa, não foi Deusa? – Diz Viçosus, enquanto sai um liquido verde do canto do seu lábio. – César vai ficar radiante.
- Diz-me, Deusa, o que ganhas com isto?
- É simples, Menditus. Com a ajuda de César e dos seus exércitos, vou conquistar a Grécia e destruir todos os templos dos Deuses, erguendo, no seu lugar, templos em minha honra.
- E o que é que César ganha com isso?
- Ganha mais uns territórios. Ele contenta-se com pouco. Mas porque é que eu ainda me dou ao trabalho de falar com vocês? Viçosus, acaba com eles
Quando Viçosus ia desembainhar a espada, Geraldus voltou a erguer as mãos acima da cabeça.
- O que é que ele está a fazer? – Pergunta Menditus a Plínio.
- Não faço ideia.
A Deusa parecia surpreendida.
- Então magricelas, o que é que estás a fazer? Eu já te disse que não te passei quaisquer poderes.
Geraldus concentra-se e as suas mãos começam a brilhar.
- Eu. Já. Te. Disse. Que. Sou. Um. Anjo!
Geraldus põe as mãos no peito de Salvadorus e este tosse violentamente e solta-se das correntes que o prendiam. Dá dois passos e toca em si, sentido as feridas a currarem.
- Não pode ser, não pode ser… - A Deusa evidenciava algum desespero
Viçosus lançou a sua espada na direcção de Plínio.
- Morre traidor! – Bramou a sinistra figura.
Salvadorus salta na direcção da espada e apanha-a em pleno voo.
- Hoje não! – E lança a espada na direcção de Viçosus, trespassando-o sem misericórdia.
Viçosus salta para trás, e jorra sangue para todos os lados.
- Não! – A Deusa estava definitivamente assustada. – Isto não foi o nosso ultimo encontro. Vão pagar por isto!
E desaparece numa nuvem de fumo.
Com este barulho todo os guardas já estavam a rodear a cela. Salvadorus, como se sentindo imortal, irrompe em direcção aos guardas, imobilizando-os em três tempos, com uma mistura de movimentos ninja com truques de crochet e até, para espanto de tudos, ponto cruz.
- Vocês salvaram-me! Estou em divida para convosco.
- Deixa lá, - Diz Plínio. – Pagas a dívida mais tarde. Agora temos de fugir!
Apressaram-se pelos corredores, limpando guardas à esquerda e à direita, chegando sãos e salvos ao barco, onde Edgar já tinha tudo pronto para eles partirem.
- Estava a ver que nunca mais!
- Segue Edgar, segue! – Grita Menditus.
Despacharam-se a tempo, conseguindo escapar por pouco às setas envenenadas dos guardas das torres. Ao chegarem a terra, Plínio afastou Geraldus do grupo.
- Geraldus, como é que fizeste aquilo?
- Plínio, eu sempre te disse que era especial. Que podia entrar no Heroes.
- Podias entrar onde?
- Agora não interessa. Vês? Sou um anjo. Consigo curar tudo. Vês aquela planta morta?
- Sim.
- Observa. – Geraldus estica as mãos e a planta levanta-se.
- Assombroso…
- De facto.
- Mas a Deusa não tinha dito que não te tinha passado os poderes?
- Tinha. Mas este poder parte do meu interior. Sou um anjo. Um brilhante anjo.
- …
Juntaram-se todos e planearam o que iriam fazer a seguir.
- De certeza que a Deusa já contou a César o que se passou, vai ser complicado chegar ao palácio - Diz Menditus.
- Não te preocupes… Penso que iremos ter um apoio de peso… - Diz Plínio, de forma enigmática, perante o olhar incrédulo dos seus companheiros.

XXXI - Malo Mori Quam Foedari

Chegaram rapidamente às portas de Roma. Viam poucas pessoas ao longo das estradas, os arredores de Roma pareciam desertificados. Ao passarem pelas primeira fronteira colocada a caminho de Roma, Venusiana ia ao comando da carroça, ficando Plínio e os restantes companheiros escondidos debaixo de umas lonas.
- Alto! Quem anda aí? – Grita o legionário romano.
- Ninguém, apenas uma psicóloga a caminho de Roma.
- E o que levas aí, oh psicóloga?
- Nada.
- Nada? – Diz Plínio lá de trás, indignado.
- Que foi isto? – Pergunta o legionário
- Nada! – Responde Venusiana, dando um chuto na lona.
- Bom, então eu vou ter que investigar o que há lá para trás. Os seus documentos, por favor. Vamos ver se está tudo em conformidade com o código da estrada empedrada.
Venusiana dá-lhe os documentos, enquanto a legião anda à volta da carroça.
- Espere! – Diz Venusiana. – Veja lá bem os documentos, pode ser que haja alguma irregularidade!
- Já vai, primeiro quero ver o que há debaixo destas lonas.
O legião levanta a lona.
- Não! – Grita Venusiana.
Não havia nada debaixo das lonas.
- Não o quê? – Pergunta o legionário, desconfiado.
- Não me lembro onde deixei uma coisa.
- O quê?
- A… Mala.
- Hmmmmm.. Bem, pode seguir.
Entretanto, atrás de uns arbustos, Plínio e os seus companheiros aguardavam que o guarda se distraísse para voltar para a carroça.
- Então e se ele não sair da carroça? – Pergunta Gaius.
- Então, o ali o Salvadorus vai lá, e, sendo ele um reconhecido guardião / lutador / legionário / ninja / cinturão negro das mais diversas artes marciais / manejador de todas as armas e utensílios de cozinha, dá cabo dele. E nós seguimos. – Responde Geraldus, despreocupado.
- As tuas palavras honram-me, Geraldus, mas talvez seja imprudente avançar assim. – Retorque Salvadorus.
- Tens razão. – Intervém Menditus. – Geraldus, ouve as palavras sábias de Salvadorus, pois além do que tu mencionaste na tua intervenção anterior, ele é igualmente um mestre da estratégia militar.
Decidiram então esperar para ver o que Venusiana conseguia fazer.
- Então a senhora pode ir andando. – Diz o Legionário, fazendo sinal para ela avançar.
Venusiana não se movia.
- Então, está confusa? Roma é para aquele lado. – O Legionário aponta para Roma.
- Ah, é que… Estou só a pensar numa coisa…
Os restantes viajantes aguardavam atrás do arbusto, impancientes.
- Eu não aguento mais, eu vou lá e desfaço o gajo. – Diz Plínio. – Ele está a desconfiar de alguma coisa.
- Tem calma, Plínio. – Argumenta Menditus. – É melhor ir o Salvadorus. Salvadorus, vai lá, senão aqui o rapaz não sossega. Neutraliza o guarda. Mas de forma sub-reptícia.
- Assim o farei, Menditus.
Salvdorus começa a gatinhar, por detrás dos arbustos, tentando não ser detectado. Era uma noite fria, com um luar fortíssimo, Salvadorus tinha de ter o dobro do cuidado nas suas movimentações. Gatinhou, gatinhou, e depois escondeu-se atrás de uma árvore. Aproximou-se das costas do legionário, completamente furtivo.
- Olha para ele, aquilo é poesia em movimento! – Diz Menditus.
- Tás a ver? – Geraldus dá um calduço em Plínio. – Era assim que tu devias fazer. Anda aqui um gajo a treinar-te durante meses, para nada. Sempre me disseram “Geraldus, não treines mulheres, não treines mulheres”, mas vá lá um gajo dar ouvidos a tudo o que lhe dizem não é?
- Calem-se! – Diz Gaius. – Observem bem, é agora…
Salvadorus já estava mesmo colado a ele. Toca-lhe no ombro esquerdo. O legionário volta-se mas não vê ninguém. Depois, nas suas costas, sente outro toque, desta vez no ombro direito. Volta a virar-se mas não vê nada.
- Quem… Quem é que anda aí? – Pergunta o legionário, obtendo apenas como resposta o soprar gélido do vento nocturno.
Salvadorus surge na sua frente, pregando-lhe um susto de morte.
- General Salvadorus, o que faz aqui? – O legionário estava altamente confuso.
Salvadorus não responde. Apenas cerra os olho e faz a pose do “tigre incontinente”, uma pose de luta apenas ao alcance dos predestinados.
- Ahhhhh – Todos abrem a boca, plenos de espanto e temor.
- A pose do “tigre incontinente!” – Exclama Geraldus. – Nunca pensei, em toda a minha vida, ver alguém a conseguir esta pose. É fantástica, sublime.
O legionário estava tão incrédulo quanto os restantes. Salvadorus começa a abanar os braços.
- Ah! A “paralítica assassina”! – Diz Geraldus. – Pobre legionário, até tenho pena dele.
- Que Zeus guarde a sua alma. – Diz Edgar, apontando para os céus.
Salvadorus arranca com a potência de uma quadra romana mas com a leveza de uma borboleta em direcção ao legionário, que brande uma espada na sua direcção. Salvadorus aproxima-se perto o suficiente e desfere o fatal golpe: uma leve mas bem colocada joelhada na coxa, e um toque com os nós dos dedos no braço, perto do ombro.
- Ai! – Grita o legionário, em desespero. – Paralíticas não!
- Que crueldade, mas, ao mesmo tempo, que coragem, que precisão… - Analisa Menditus.
- Isto é poesia, meus amigos. – Diz Geraldus. – Vê como o guarda se contorce como uma menina. Salvadorus é letal.
Sem se aperceberem estava a ser observados por um legionário que se encontrava dentro da guarita. Sai pelas traseiras, monta a cavalo e sai disparado junto à próxima fronteira. Sobem todos para a carroça, por entre felicitações a Salvadorus, e seguem rumo a Roma.
Ao chegarem ao próximo controlo romano, estranham o facto de não estar ninguém à vista. Venusiana desce da carroça e espreita para dentro de uma guarita, mas não se encontra lá ninguém.
- Isto é muito estranho. – Diz Gaius. – Porque é que não ouço o guarda?
- Não sei... Também não me parece nada bem. – Acrescenta Menditus.
Sem nada o fazer prever, vários guardas romanos saltam de trás dos arbustos que ladeavam a estrada. Tinham caído numa emboscada. Foram rodeados, e um dos legionários levantou a lona que os protegia. Plínio olhou bem à sua volta. Eram dez guardas, eles eram oito. Não seria difícil derrotá-los.
- Alto, guardas! – Exclama Plínio. – A quem respondem e porque nós ameaçam?
- Nós, ao contrário dos traidores, estamos debaixo das ordens do Imperador. E vocês estão condenados à morte. E têm prémios por captura. E morte.
- Ai sim? – Pergunta Geraldus. – Se eu matar o Plínio agora recebo o quê, assim mais concretamente?
- Ora bem, o Plínio, deixa cá ver, o Plínio... – O legionário vai consultando os seus pergaminhos. – Ah, cá está, “Plínio Plagius, o Gladiador”. Seiscentos sestércios.
- Seiscentos? Isso é o preço de uma PSIII. Geraldus, dá me a tua espada que mato-o eu! – Diz Menditus, ansioso.
- Então, aqui ninguém vai matar ninguém não é? – Acrescenta Gaius, tentando acalmar as coisas.
- Mas eu quero uma PSIII, oh faz favor, Geraldus, dá cá a espada.
Menditus tira a espada de Geraldus e salta na direcção de Plínio. A confusão instala-se, com os legionários a tentarem separá-los e os amigos também. Nisto, Salvadorus começa a despachar legionários. Geraldus apercebe-se e também faz o mesmo.
- Fujam, rápido! – Avisa Geraldus.
Já só faltavam três legionários, e Geraldus ia abrindo caminho para todos passarem, enquanto Salvadorus vigiava a retaguarda. A carroça arranca, e nisto surgem mais vinte legionários. Salvadorus tenta correr para a carroça mas é atingido por uma seta na perna.
- Não! – Grita Plínio. – Parem a carroça!
- Sigam! Sigam! – Grita Salvadorus. – Salvem-se!
- Temos de parar imediatamente! – Plínio estava desesperado.
- Não Plínio! – Geraldes puxa-o para trás. – O Salvadorus sacrificou-se por nós. Não estragues o seu gesto.
- Sigam! – Gritou mais uma vez Salvadorus.
Já com duas setas nas pernas, Salvadorus parou de correr, tirou as setas e voltou-se para trás. Correu eu direcção aos romanos, e durante uns segundos, foi só ver romanos a voarem para todos os lados. Mas os legionários não paravam de aparecer, e uma seta atirada pelas costas, deitou Salvadorus ao chão, inanimado.
- Não! – Plínio não continha o desespero.
No meio da estrada, como se vindo do nada, Viçosus lançou uma seta envenenada na direcção de Salvadorus, que não resistiu. Em seguida, montou o seu cavalo preto e desapareceu rapidamente.
Os legionários começavam agora a ficar no horizonte, e a última imagem que ficou queimada na retina de Plínio foi os legionários a carregarem o corpo inanimado de Salvadorus para uma carroça. Nesse momento Plínio jurou que teria o cadáver de Viçosus na mão, custe o que custar.
- Não podemos seguir para Roma. Pelo menos todos juntos e debaixo deste aparato. – Diz Vénus, a sensual esposa de Menditus.
- Sim, meu anjo, tens toda a razão, como sempre. O que sugeres?
- Eu voltava para a Lusitânia! -. Diz Geraldus.
- Tenho uma ideia melhor. – Vénus olha para Menditus. – Vamos para a Atlântida.
- Atlântida? – Perguntam Gaius e Edgar.
- Sim... – Plínio olha para o céu. – Platão sabia a sua localização. Tu também sabes Vénus?
- Como rainha das amazonas, sei muita coisa. Para além de matar e tal. Sei onde fica Atlântida, um local tão próspero que faz Roma parecer uma aldeia perdida.
A carroça fez uma alteração na marcha e seguiram em direcção ao Mediterrâneo. Aí, com a ajuda das indicações de Venusiana conseguiram encontrar a mítica Atlântida.
- Epá, isto parece-me agradável. – Observa Geraldus.
- Não parece mau... – Plínio continuava muito abatido pelo triste destino de Salvadorus.
- Não te sintas mal Plínio, nós estamos todos muito em baixo pelo Salvadorus. – Diz Edgar.
- Temos de planear qualquer coisa para podermos voltar a Roma e acabar com esta loucura.
Arranjaram um sítio para ficar. Tudo estava limpo e aquela civilização estava avançadíssima. Na suite de Menditus e Vénus, havia uma banheira de hidromassagem e o quarto tinha uma porta de correr com vidro fosco que dava para a sala. Vénus adorou.
- Menditus, se calhar não voltamos para Roma.
- Bem sei que gostas disto minha princesa, mas temos de salvar o império e o Geraldus tem de cumprir a profecia da Deus e...
Vénus vai para a banheira de hidromassagem com vista sobre o mar.
- E... Se calhar até ficamos por cá. – Diz Menditus, hipnotizado.
Entretanto, Plínio dava umas voltas com Edgar, Gaius e Geraldus. Todos eles estavam de acordo que Roma seria um local melhor se fosse construída como aquela cidade.
- Isto é deveras fantástico. – Diz Gaius.
- Nem mais, nem mais... – Acrescenta Plínio. – O nível cultural dos habitantes, as tertúlias filosóficas, o gosto pelo ambiente, a tecnologia. Esta cidade foi criada pelos Deuses.
- Tenho a certeza que a Atlântida vai durar até ao fim dos dias. Maravilhoso.
- Vocês têm toda a razão... – Intervém Geraldus. – Eh, o que é isto?
Geraldus aponta para uma espécie de ralo com uma tampa, que tinha um cartaz a dizer não mexer. Geraldus olha para o cartaz. Olha para o ralo. Olha para o cartaz. Olha para o ralo. Não resiste e puxa o ralo. Surge um jacto de água que se eleva umas centenas de metros no ar.
- Ups...- Diz Geraldus, afastando-se do local.
- Isto não pode ser boa coisa. – Diz Gaius. – Olhando para a largura do ralo e para a altura do jacto, quando a água descer vai inundar tudo, possivelmente submergir a cidade!
- Geraldus! – Gritam todos em conjunto.
Por esta altura já toda a população estava em pânico. A água começou a cair e a inundar tudo.
Menditus estava a admirar a vista, na companhia da sua curvilínea esposa, naquela magnifica banheira.
- Olha meu amor... Estar aqui contigo é tão bom que eu até estou com visões.
- Então, meu macho alfa?
- Vê lá que parece que o nível da agua está a subir e a inundar tudo...
Vénus levanta-se.
- Meu príncipe, olha que acho que está mesmo!
De repente, surge Geraldus, vindo numa onda, estatelado contra o vidro, fazendo o sinal de quem pede desculpa, e depois faz sinal para eles subirem. Entra água por todos os lados e a cidade cai, perdida para sempre, no fundo do mar.
Passado uns minutos, dão todos à costa.
- ... Gerladus! Onde estás Geraldus! – Plínio estava furioso.
- Aqui... – Diz Geraldus, enquanto cuspia água. – Bem, pelo menos não vou ter que snifar água durante uns belos meses. Estou limpo.
- Estás tu e a cidade, inteligência! – Plínio não se continha. – Então tu não leste que dizia lá não mexer?!
- Plínio, Plínio, é nestas alturas que eu vejo que falhei como professor. Repara, as cidades são como as mulheres. Elas também dizem sempre para tu não mexeres, mas tu paras? Claro que não. Mexes outra vez. Até levares um estalo, não quer dizer sim. Considera isto como um estalo da Atlântida.
- ... Eu nem comento!
- Eu não sei quanto a vocês. Mas eu estou farto disto. – Diz Menditus. – Vamos para um lado, vamos para o outro, é só aventuras. Eu gostava de assentar.
Todos acenaram com a cabeça. Apesar de já não contarem com a preciosa ajuda de Salvadorus, estava na hora de resolver os assuntos. De uma vez por todas. Próxima paragem, Roma.

XXX - Cantilenam Endem Canis

Tinham preparado tudo ao milímetro. Todos trabalhavam para ajudar aquela aldeia a defender-se da ameaça romana. Todos, menos, obviamente, Sancto Geraldus.
- Olha, só assim naquela da amizade, - diz Plínio. – não vais ajudar-nos a defender a aldeia? Queres que morra toda a gente?
- Tem calma.
- Calma? A minha ética não me permite ter calma numa altura destas. Está em jogo a vida de demasiada gente.
- Sabes, - Diz Geraldus, enquanto se sentava numa carroça carregada de pedras. – tu preocupas-te demais.
- Andaste a snifar água com sal outra vez não andaste? Eu bem disse ao Menditus para não te ensinar essas coisas, mas aquele gajo não aprende!
- Por acaso até andei, mas sempre é melhor do que enfiar um regador de jardim no nariz...
- Então, a discutir outra vez os vossos problemas nasais? – Interrompe Menditus.
- É aqui este gajo que não ajuda. – Diz Plínio, apontando para Geraldus. – É que nem que fosse por uma questão ética, ele tinha de ajudar estes pobres lusitanos!
- Oh Geraldus, então não nos dás uma ajudinha? – Inquire Menditus.
- Tenham calma...Já vos disse para terem calma.
- Pronto, é só isto que ele sabe dizer, eu já não sei o que fazer. – Acrescenta Plínio, descrente.
A verdade é que as horas foram passando e os romanos teimavam em não aparecer. Salvadorus estava à porta, com três espadas, dois escudos, uma lança, um arco com flechas, dois doses de frango e um sundae de chocolate. Tinha de estar preparado.
- Ora bem, nós somos, deixa cá ver, três, mais os que viemos de Roma, oito, mais aqueles que vêm ajudar da aldeia ao lado, ora bem, três vezes doze, exacto, somos, exactamente, muitos. Aliás, para lá de muitos! – Diz Salvadorus, confiante.
- Ainda bem que estás confiante, Salvadorus. – Intervém Menditus. – Mas quer me parecer que os romanos não vêm hoje.
- Eu preocupo-me mais com a dama do bigode.
- Então, ela tem te perseguido?
- Tem, e o pior de tudo é que eu fico vidrado no decote e depois ignoro o buço.
- Tu e os decotes...
- Qualquer dia ainda me desgraço à conta de um decote...
Entretanto, a meio da aldeia, Plínio andava para trás e para a frente, incapaz de conter o seu nervosismo.
- Mas como é que este gajo até para uma luta chega atrasado e... Olha, lá vem ele. Oh Geraldus! Mas isto são horas?!
- Tinha de dormir...
- Tinhas de dormir? E se os romanos aí viessem e te matassem no sono.
- Descansa. Eles não vêm.
- Como sabes? Ah, espera, sonhaste com isso foi?
- Não. Recebi a informação de uma fonte privilegiada. Aliás, eu próprio tive grande influência neste desfecho. E só te digo que a hora de voltarmos para Roma aproxima-se rapidamente.
- Mas... Como?
- As Caves de Alcoitonius.
- As Caves de Alcoitonius?
- As Caves de Alcoitonius...
- Ah, as Caves de Alcoitonius... O que é isso? – Pergunta Plínio.
- Uma ancestral sociedade secreta da qual o teu caro e inigualável mestre faz parte. Aliás, há quem diga que este teu professor da arte da luta é, efectivamente, o presidente dessa mui nobre e secreta associação.
- Nunca tinha ouvido falar.
- É natural. Dai o “secreta” no nome.
- Ah, isso explica muita coisa.
- Nunca te tinha contado isto antes por razões que não te posso contar.
- O quê?
- Nada. Agora foi a altura certa para te contar. Se mostrar que mereces, levarei te até às Caves de Alcoitonius.
- Espera lá, isso não é como da outra vez em que me levaste para a cave e depois querias mostrar-me o teu músculo dorido, pois não?
- Não, não...
- Ah bom.
Salvadorus continuava atento na frente da aldeia, e estava prestes a receber o chefe da aldeia.
- Salvadorus...
- Sim, grande chefe.
- Diz-me, os romanos não vêm pois não?
- Aparentemente não, chefe.
- Será que conseguimos safar-nos através de meios diplomáticos?
- Não sei, mas com o Geraldus e o resto do pessoal, já espero tudo.
- Quero recompensar-vos pela vossa ajuda, de qualquer forma.
- Nós agradecemos.
- Diz-me só mais uma coisa, oh grande guerreiro Salvadorus.
- Claro, chefe.
- Aquele magricelas, das carótidas salientes...
- O Geraldus.
- Sim, esse... Ele não ajudou muito pois não?
- Mas está a perguntar-me?
- Sim.
- Mas está a perguntar-me a mim directamente?
- Estou.
- Mas está a perguntar-me a mim directamente com a intenção de quem faz um pergunta esperando obter uma resposta para a supracitada pergunta, não tendo porém segundas intenções tais como enganar um pobre guerreiro, está a perguntar-me exactamente o que as suas palavras querem dizer, a mim mesmo?
- Estou.
- Mas tem a certeza que quer saber a resposta para a pergunta que me foi dirigida directamente por si para mim, à qual eu irei dar uma resposta à pergunta que me foi dirigida directamente por si, para mim, para si?
- O quê?
- Bem me pareceu! Você quer-me enganar!
- ...
- Não, não trabalhou muito. Mas parece-me que ele foi fulcral nesta situação toda, sabe?
- Ai sim?
- Eu ouvi-o a dizer que ia para uma reunião para resolver este imbróglio porque, passo a citar, “não me apetece lutar”.
- Então mas ele não é um guerreiro? – Pergunta o chefe, confuso.
- É. – Responde Salvadorus. – Mas também é livreiro e nunca o vi arrumar um livro. Por isso...
Edgar, Gaius, Menditus e Geraldus iam arrumando as coisas para voltar a Roma.
- Acreditem em mim. – Diz Geraldus, perante a desconfiança dos seus amigos em voltar para Roma.
- Eu só acredito em ti, - Responde Plínio. – Porque é eticamente necessário.
- Eu tenho as minhas dúvidas. Mas já aprendi a fazer o que tu dizes porque tu ages de maneiras muito misteriosas, mas eficazes. – Diz Menditus.
- Palavras sábias, Menditus. – Diz Geraldus.
- O Juristus já foi andando na sua Carroça de 3 cavalos, no sentido de tratar dos trâmites legais do nosso regresso. Penso que ele irá conseguir com que deixem de nos perseguir pelo menos durante os primeiros dias. – Acrescente Geraldus.
- Eu e o Gaius ficaremos a tomar conta da livraria e serviremos como apoio às vossas acções. – Diz Edgar.
- Obrigado. – Diz Menditus. – Mas, Geraldus, quais serão as nossas acções?
- Eu, tu, o Plínio e o Salvadorus temos grandes feitos à nossa espera. E sei que não iremos desiludir a Deusa. Até porque ela é, lá está, uma Deusa, e tem poderes mágicos. E ela pode encolher coisas, e fazê-las desaparecer. Se é que me entendem. E eu prezo muito a minha masculinidade. Aliás, já vos disse...
- Sim, que és extremamente bem dotado e que serás uma dádiva para a rapariga que te tomar como sua esposa, - Dizem os outros todos em uníssono. – e que és desproporcionalmente dotado e que, durante a tua infância, pensavam que era uma doença, que tinhas uma perna extra.
- Vocês conhecem-me tão bem.
Reuniram-se todos na praça da aldeia, fizeram as despedidas necessárias e fizeram-se ao caminho.
- Oh Geraldus, explica-me lá bem aquilo das Caves... – Diz Plíno, durante o caminho.
- Agora não posso, há demasiada gente a ouvir...
- Mas são os nossos amigos...
- Eu não tenho amigos...
- Achas isso eticamente aceitável?
- Olha, como é que se chamava o teu professor de ética, em Atenas?
- Eticus Augustus, o Ético, porquê?
- Nada, nada. – Diz Geraldus, tomando umas notas.
Já nos arredores de Roma aproveitaram para parar.
- Temos de parar Geraldus, os animais têm de descansar! – Grita Menditus, da carroça da frente.
- Anda lá oh Menditus, o Plínio aguenta!
- Eu estou a falar dos cavalos.
- Ah bom, então paremos.
E assim o fizeram, pararam junto a um lago e aproveitaram para se refrescar. Plínio ouviu um barulho estranho vindo detrás de umas árvores e foi investigar. Quando viu o que era, Plínio não queria acreditar na sua sorte. Era a rapariga de Roma!
- Olá, - diz Plínio, envergonhadamente. – Lembras-te de mim? Nós discutimos sobre filosofia e psicologia em Roma...
- Sim, lembro-me. Afugentámos aqueles ladrões...
- Nem mais. Ah, que cabeça a minha, sou Plínio Plagius, o famoso gladiador filosofo escritor filantropo.
- Venusiana... – Diz a rapariga, esticando a mão para Plínio. Este dá-lhe uma palmada.
- Tá-se bem, io e tal, se é assim que curtes as cenas, man. Então, que estás aqui a fazer?
- Moro aqui perto...Estou a aproveitar a calma dos bosques para trabalhar.
- E o que estás a fazer?
- Estou a corrigir uns livros...
- Ah, sabes que eu sou escritor?
- Já o mencionaste, juntamente com a parte do gladiador, filósofo e mais não sei o quê.
- Ora lê isto, e diz-me o que achas.
Plínio entrega-lhe umas tábuas e fica encostado a uma árvore na sua já famosa pose de leão. Venusiana começa a ler em voz alta.
- “Se decidi atravessar a rua e entrar na loja, deve ter sido porque, secretamente, queria recomeçar a trabalhar - sem o saber, sem ter consciência da fome que se tinha vindo a acumular dentro de mim. Não tinha escrito nada desde que saíra do hospital em Maio - nem uma só frase, nem uma só palavra - e não sentira a menor inclinação nesse sentido. E eis que agora, sem mais nem menos, ao fim de quatro meses de apatia e silêncio, metia na cabeça que tinha de abastecer-me de um sortido completo de artigos novinhos em folha: canetas e lápis novos, um caderno novo, borrachas novas, cargas novas para as canetas, pastas e blocos novos, enfim, tudo novo.”
- Então, gostaste?
- Plínio... Isto é Paulus Austerus, “Oraclius Noctis”.
- Ah, é?
- É...
- Ah, pois, é que eu...
- Esse nome Plagius não é por acaso pois não?
- Pois, tens razão... Olha! Parece que me estão a chamar. Tenho de ir para Roma... Vejo te lá, novamente? - Pergunta Plínio, envergonhado.
- Talvez... Mas tenho uma ideia melhor. Eu tenho de ir para Roma também. Posso ir com vocês? Evitava muita chatice.
- Claro, penso que não vai haver problemas da parte deles.
- É que eu tenho de ir dar umas consultas ao palácio de César, aliás, consta que o próprio César irá participar nas sessões de psicologia.
- Não me digas...
Plínio percebeu logo ali que Venusiana poderia ser extremamente útil para os intentos do grupo. Mas não era essa principal razão pelo seu contentamento pela nova companhia. Não havia como negá-lo. Plínio estava apaixonado.

XXIX - Persona Non Grata

Não tendo condições para continuar em Roma, Plínio e os seus companheiros tiveram de fugir. Desde cedo a Lusitânia, um cantinho de terreno com vista para o Atlântico, pareceu a melhor alternativa. Afinal de contas, Plínio já lá tinha estado e o local tinha-lhe agradado bastante.
Chegados à Lusitânia trataram de instalar-se. Menditus estava abalado por não ter a sua biblioteca, e Plínio e Geraldus também andavam deprimidos por não poderem ir ao Coliseu. A estada na Lusitânia ainda iria durar algum tempo, não podiam correr o risco de voltar a Roma quando ainda tinham as suas cabeças a prémio. Cada um tentava arranjar distracções adequadas.
- Pois é Menditus, - Diz Geraldus. – Isto aqui não se faz nada.
- É verdade… Não fosse a companhia da minha curvilínea esposa isto seria bem mau. É que, parecendo que não, o facto de eu chegar a casa e ela estar nos banhos, desnuda, dá sempre para…
- Já percebi, já percebi. Já chega, Menditus.
- Pois…
- Acho que vou comprar uma PSIII.
- O quê?
- Uma PSIII. Porque não? São seiscentos sestércios, mas eu também não gasto dinheiro em nada…
- Não podes.
- Porquê?
- Porque se eu não tenho uma, tu também não podes ter!
- Não estás a ser um bocado infantil? – Pergunta Geraldus, perplexo.
- Quem diz é quem é! – Responde Menditus, enquanto cruza os braços.
- …
- Não podes, Geraldus. Se eu não tenho também não podes, além disso, a minha PSII estragou-se. Portanto, nem penses.
- …
Geraldus levantou-se e foi ter com Plínio, que conversava com Edgar, enquanto este praticava uns feitiços.
- Então, Geraldus, que fazes? – Pergunta Plínio.
- Nada de mais… E vocês?
- Estamos a falar da nossa adolescência… - Responde Edgar.
- Ena pá… A adolescência… Uma vez estava a praticar desporto e entrei numa discussão com o meu adversário. A última coisa que me lembro foi de estar a discutir com ele. Deu-me me uma branca, e quando dei por mim, estava em cima dele a torcer o pescoço, ele estava todo azul, quase morto.
- …
- É verdade, estão a gozar, mas é verdade… Tiveram que tirar-me de cima dele.
- Hoje em dia passa-se basicamente o mesmo.
- Como assim? – Pergunta Geraldus.
- É normal ouvir homens a gritar: “Tirem o Geraldus de cima de mim! Porque é que ele está nu?!” – Diz Plínio, enquanto riem os dois.
- Ah.. Ah… - Retorque Geraldus. – Muito engraçadinhos.
- E as idas ao poste? – Inquire Edgar.
- Brutal… - Responde Plínio.
- Uma vez quiseram levar-me ao poste… - Interrompe Geraldus.
- Oh não… - dizem os dois.
- E eu podia ir ao poste… Mas enchia toda a gente de porrada. Uma vez um grandalhão pegou-me por trás…
- Lá está, as tuas histórias envolvem-se sempre tu em posições dúbias com outros homens. – Diz Plínio, entre risos.
- Ri-te, ri-te, queria ver se fosses tu. De qualquer forma, ele agarrou-me e mandou um miudinho bater-me. Eu não disse nada, só olhava para ele enquanto ele me batia. Ele pedia desculpa e dizia que tinha sido o outro a mandar.
- E depois?
- Depois um dia, apanhei-o a caminho da academia e mandei-o a ele e à sua carroça para as silvas. E depois fugi!
- E apanharam-te?
- Não. Andei escondido.
- Durante quanto tempo? – Pergunta Edgar.
- Até hoje. Se virem aí um gajo com uns espinhos na testa avisem. Só por precaução.
Plínio levantou-se e foi ter ao centro da vila, onde tinha combinado encontrar-se com o seu velho amigo Jesus Cristo.
- JC, bons olhos te vejam!
- Grande Plínio, como vais?
- Bem, mas…
- Já sei, não há nada para fazer.
- Porque é que me perguntas as coisas se és omnisciente?
- Olha, ai está uma coisa que eu não sei! – Diz Jesus Cristo, dando uma palmada nas costas de Plínio.
- Valha-me Deus. – Diz Plínio, enquanto tosse.
- Não digas o nome do Senhor em vão. – Diz Jesus, debaixo de uma enorme trovoada.
- Desculpa! – Diz Plínio ajoelhado, mal se conseguindo ouvir por causa dos trovões.
Os trovões param, e quando Plínio abre os olhos vê Jesus a olhar para céu, enquanto aponta para ele e ri.
- Estás a ver Pai?! – Perguinta Jesus. – Ele cai sempre!
- Conta-me Jesus, como está Sócrates no céu?
- Está bem, montou uma barbearia, é responsável pela barba do Moisés e do Noé.
- Nada mau.
- Está a safar-se bem, sim.
. Então e o que é que se pode fazer para nos entretermos aqui?
- Podíamos jogar às escondidas! – Diz Jesus. – Vá eu conto até dez e tu escondes-te.
- Hmmm… Está bem.
- !... 2…. – Jesus conta lentamente.
Plínio vê uma carroça e esconde-se debaixo dela.
- Aqui estou muito bem.
- 10! Aí vou eu.
- Ele aqui nunca me apanhará e… - Plínio assusta-se ao ver Jesus ao lado dele. – Ah!
- Que má escolha, oh Plínio.
- È assim, jogar com um Deus omnipresente não dá. Vamos fazer outra coisa.
- Fogo Plínio, já na primária era a mesma coisa…
- Então, Jesus?
- Ninguém queria brincar comigo… Ou porque sabia tudo, ou porque estava em todo o lado, ou também porque andava em cima da água…
- Mas eles deviam gostar de ti, Jesus.
- Gostavam…
- Estás a ver?
- … Na hora do lanche! “Ah Jesus, anda cá, multiplica o pão c’a gente tá com fome!”.
- Não era fácil ser especial…
- Nada mesmo…
Plínio e Jesus foram andando pela vila, falando amenamente. Do outro lado da vila, Menditus encontrou-se com Salvadorus, que iria guardar a casa onde se encontravam.
- Menditus, Menditus, onde é que vais? – Pergunta Salvadorus.
- Vou dar um passeio com a minha sensual esposa pelo campo…
- Menditus, Menditus! Não vás longe!
- Porquê?
- Porque eu fico nervoso e fico mal disposto e depois não aguento! E não posso abandonar o posto.
- Não podes não…
- Quando está cá alguém eu aguento o tempo que for preciso, mas assim que se vai alguém embora eu fico mal da tripa! Oh Menditus, se eu gritar vem a correr.
- Está descansado…
Menditus partiu com a sua esposa e Salvadorus ficou sozinho a guardar a casa.
A noite chegou rapidamente, e depois do jantar, quando todos dormiam, Salvadorus ficou no seu posto, atento a tudo o que se passava. Tinha os sentidos apuradíssimos, era quase um lobo em forma humana. Não teve assim qualquer dificuldade em ouvir um grito vindo das traseiras. Acorreu rapidamente ao local e viu uma donzela ser atacada às mãos do que parecia ser um centurião romano. Salvadorus, um mestre em combate corpo a corpo, desarmou o centurião e acabou com ele em três tempos. A donzela ficou maravilhada.
- Oh, meu herói. – Diz a donzela, derretida.
- Isto não foi nada…
- Foste tão rápido.
- Novamente, isto não foi nada. Devia ver-me a comer um gelado.
- Hm?
- Nada, nada. Bom. Vou andando que tenho de guardar a casa.
- Mas nós precisamos de si!
- De mim? Quem precisa de mim?
- Os lusitanos.
- Os lusitanos?
- Sim, precisamos de um líder, assim alguém robusto e inteligente.
- Ah, então isso sou eu, pois. Mas, porque precisam de mim?
- Porque os romanos estão a encurralar-nos… Estamos quase dizimados!
- Então e o vosso líder, Viriato?
- Viriato já não é o que era… Ele agora queixa-se por tudo e por nada… Mas se tu estivesses do lado dele…
- Hm…
- Ele precisa de alguém novo e forte… E bonito… Do seu lado!
- Penso que sou o homem ideal para o trabalho. Está bem mulher, podes dizer ao teu povo que conte comigo!
E lá foi a mulher a correr dar as boas novas ao seu povo.
Pela manhã, Plínio rendeu Salvadorus no seu posto e este aproveitou para se deslocar ao povoado dos lusitanos.
Mas chegou ao local, reconheceu a donzela da noite anterior que, com a luz do Sol, demonstrava um farto buço e um generoso traseiro.
- Anda, vem comigo, eu levo-te até ao Viriato.
Salvadorus acenou com a cabeça e seguiu atrás da donzela pelo meio da aldeia. Entrou numa cabana escura e lá estava ele, num trono de barro, Viriato.
- Então és tu que vens ajudar? – Pergunta Viriato com a voz rouca.
- Sim.. Foi a mim, Salvadorus, que pediram ajuda.
- E o que tens em mente?
- Ora bem, eu queria alterar ali a disposição de algumas casas e…
- Ninguém altera nada! – Grita Viriato.- Nada!
- Mas era só as primeiras, para tornar mais sólida a primeira linha de defesa…
- Nas primeiras ninguém toca! A primeira, porque é a primeira. A segunda, porque é a segunda. E a terceira porque é a terceira!
- Compreendo Viriato, mas podíamos improvisar e…
- Ninguém vai improvisar nada! Nada!
- Mas eu só queria ajudar, e eu vi ali outra aldeia com uma configuração assim.
- Mas isso foram aldeias construídas de raiz! Nós somos um povoado antigo, não se altera nada.
- ...
Salvadorus abandonou a tenda, chateado.
- Assim não dá para trabalhar...
- Não ligues ao velho Viriato. – Diz a donzela.
- Isso é fácil dizer...
- Anda, vem comigo, que vou ensinar-te o mecanismo de abertura do portão grande.
Enquanto a donzela estava a ensinar Salvadorus como fechar o portão em caso de emergência, surge Viriato, pouco satisfeito com o que estava a ver.
- Eh! Eh! Mas o que é que passa aqui? – Brame Viriato.
- Chefe Viriato! Estava só a ensinar ao Salvadorus como fechar a ponte... Responde a donzela.
- Não é qualquer pessoa que faz isso! Isso não é para qualquer um! Vamos lá ver!
-... Eu vou mas é embora que ele ainda me bate! – Diz Salvadorus, saindo da aldeia.
- Eu imploro-te! – Diz a donzela. – Fica! Precisamos da tua ajuda. A invasão dos romanos está próxima. Precisamos de ti, oh líder.
- Sendo assim... Vou reunir os meus companheiros e já volto.
Salvadorus foi até à vila e explicou o caso aos seus amigos, que acederam ajudar. Para causar embaraços aos romanos estavam lá eles. Foram então todos juntos, para a aldeia. Chegados à aldeia, Salvadorus foi apresentando toda a gente aos locais. A donzela aproximou-se de Salvadorus para lhe agradecer.
- Obrigado Salvadorus.
- De nada, não fiz nada que outro magnificente herói não fizesse.
- Salvadorus, agora preciso que venha comigo e me ajude a fechar o portão.
Salvadorus ficou parado durante largos momentos, como se hipnotizado.
- Salvadorus, - Diz Edgar. – Ela pediu para ajudares a fechar o portão, não para ficares hipnotizado pelo decote dela.
- Ma... Mamas... Mas eu não posso mexer no portão...
- Podes... – Diz a donzela, enquanto exibe o decote.
- Posso... Posso...
- Claro que podes...
- Então vamos.
Olharam uns para os outros e encolheram os ombros. Foram dar uma volta pela aldeia, tinham de estudar bem a situação e ver com quem podiam contar para o combate. Os romanos tinham prometido vir amanhã queimar tudo. Tinham de estar preparados.

XXVIII - Litem Ne Quaere Cum Licet Fugere

Um sentimento de consternação invadiu todos os presentes na sala. Tudo indicava para que Plínio tivesse sido assassinado. Até o pedaço de seitan que ele transportava na sua sachola estava abandonado no chão da livraria. A altura era de luto, e um silêncio do tamanho do mundo enchia a biblioteca.
Do outro lado de Roma, nos seus aposentos reais, César ria de felicidade.
- Então tu mataste mesmo o Plínio, Gominhos?
- Matei, César, como haveis ordenado.
- Excelente, excelente... Agora só falta tratar dos outros traidores. Deixaste pistas?
- Nada, César.
- Óptimo. Viçoso... Aproxima-te.
E do nada, como se saindo da sombra, aparece Viçoso, para saber dos desejos de César.
- Sim, meu Imperador.
- Existem duas minhocas na maçã da minha governação. Trata das duas... Aqui o Juristus ajuda-te na parte burocrática.
- Assim o farei, Imperador.
- E tu, Gominhos, luta hoje no Coliseu. Tenho uma surpresa para ti. Acho que a mereceste.
- Obrigado, oh César.
Seguiu cada um o seu caminho, enquanto César se vangloriava de ter eliminado a oposição. César não tinha conseguido perceber os planos deles, mas algo que envolvesse uma possível perca de poder ou tentativa de assassinato teria de ser cortada pela raiz. E assim foi.
Na biblioteca, Menditus ia arrumando algumas coisas com a ajuda de Salvadorus. Estes eram tempos difíceis. As negociações com algumas editoras tinham chegado a um impasse, e havia muitas devoluções para fazer, o que sem o Plínio era muito complicado. Toda a gente sabia que ele era o rei da devolução, o mestre do livro perdido, o herói das listagens impossíveis. Muitas vezes quando Plínio estava a devolver, o resto da equipa ficava apenas a observá-lo, boquiabertos. De repente, e sem nada o fazer prever, Geraldus entra na biblioteca, bate com a porta e começa a colocar caixas a tapar a entrada.
- Geraldus, o que raio...
- Calem-se, calem-se todos! Ele vem aí!
- Ele quem? – Pergunta Menditus.
- O Minotauro!
- Qual Minotauro? – Inquire Salvadorus.
- O ex-namorado daquela alucinada com quem eu saí!
- Então mas tu não tinhas dito que não saías mais com ela?
- Tinha. Mas dei-lhe uma segunda oportunidade.
- Então?
- Oh, fui dar um passeio ali pela zona dos banhos, mas depois ela ficou cada vez mais estranha. E já vi que aquilo é muito atrofio para uma pessoa só.
- Já vi que sim...
- Até que vou levá-la a casa, e ela vê a carroça do Minotauro e diz para eu me esconder senão ele partia-nos a boca aos dois!
- A sério?! – Pergunta Menditus. – Que atrofio.
- E depois começa a dizer que tem de ir ter com ele para ele não se chatear e mais não sei quê. E eu fugi a toda a velocidade.
- E ele perseguiu-te?
- Não sei. Não vi.
- Então porquê este drama todo? Estás a desarrumar tudo!
- E se ele veio?
- Se ele vier, está ali o Salvadorus. Olha bem para aquele espécimen da raça masculina. Achas que alguém se mete com ele? Nem pensar.
- Agora é que estás a falar bem Menditus. – Diz Salvadorus, adoptando uma pose imponente.
A conversa é interrompida por um bater seco e repetido na porta.
- É o gajo! Escondam-me! Escondam-me!
- Vou lá ver quem é, tem lá calma. – Menditus espreita pelo buraco da porta e vê a guarda romana. – A guarda romana? O que é que se passa?
Menditus abre a porta e os guardas empurram-no para cima das caixas.
- Salvadorus! – Grita o primeiro guarda. – Estás preso pela morte de Plínio Plagius, o Gladiador.
- Eu?! Mas eu estava com eles e...
Salvadorus e atingido por uma pancada forte e perde o equilíbrio. Os outros dois guardas acorrentam-no e levam-no para fora da biblioteca. Geraldus foi ver do estado de Menditus, que dispensou a ajuda e deu dois pontapés nas caixas.
- O que é que se está a passar?! Estamos a perder o controlo de tudo!
- Calma Menditus. – Diz a sua esposa.
- Calma? Calma?! O Plínio está morto, o Salvadorus está preso, o que é que vem a seguir?
- Tem calma, meu macho alfa, tu como líder saberás organizar o teu grupo e salvar tudo.
- Eu sei lá...
- Ela tem razão, Menditus. – Diz Geraldus. – Vou ter com o Juristus, eu sei que ele almoça por esta altura e vou tentar com que soltem o Salvadorus. Depois vou tentar falar com a Deusa Diana, porque isto não está nada a correr como o previsto!
- Nada mesmo! – Grita Menditus, enquanto pontapeia mais umas caixas.
Geraldus seguiu para o local onde Juristus costumava merendar, mas este não estava lá. Perguntou por ele e indicaram-lhe para subir, porque Juristus estaria no segundo andar.
Ao chegar lá, viu uma pessoa sentada de costas para a porta.
- Então Juristus? Tudo bem? Como é que é, andas aí na janela a ver umas gajas não é?
Sem dar uma resposta, o vulto vira-se e Geraldus fica estarrecido. Era Viçosus.
- Viçosus... Onde está o Juristus?
- Preso.
- Preso?! Porquê?
- Porque não há estatuto.
- Estatuto de quê? Ele nem estuda.
- Não há estatuto. E tu não irás sair daqui. Isto está cheio de guardas.
- Porque é que me queres prender?
- Porque não tens estatuto.
- Não tenho?
- Não tens. E não há estatuto.
- Mas eu já não estudo.
- Não há estatuto.
- Eu não falo com pessoas que só dizem duas palavras.
Geraldus tira a espada e tenta atingir Viçosus, mas é interceptado por dois guardas. Dá-se uma luta intensa e demorada. Geraldus começava a ficar encostado a um canto, pois o número de guardas não parava de aumentar. Viçosus mandou os guardas pararem e olhou nos seus olhos.
- Adeus... Matem-no.
- Matamo-lo? – Pergunta um guarda. – Mas César disse para prendê-lo!
- Não... Matem-no.
- Mas porquê? – Pergunta outro guarda.
- Porque ele não tem estatuto.
- Lá está ele o e o estatuto. – Diz Geraldus. – Por favor, matem-me que eu já não aguento mais!
Subitamente um enorme barulho de vidros a partirem enche a sala. Vidros e poeira caem em cima dos guardas, bloqueando-lhes momentaneamente a vista. Quando a poeira assenta lá estava ele, com a sua máscara de urso, Gominhos.
- Que fazes aqui? César mandou-te combater. – Diz Viçosus.
Gominhos não respondeu, atirando um xizas para Geraldus, a sua arma preferida, começam a eliminar os guardas um a um. Viçosus tenta fugir para alertar o Imperador mas Geraldus encurralou-o no corredor. Seguiu-se uma violenta luta e no fim estava Viçosus de joelhos, aos pés de Geraldus, implorando pela vida.
- Dá-me uma boa razão para não te matar, asqueroso... – Diz Geraldus, enquanto encostava o xizas ao pescoço de Viçosus.
- Porque não há estatuto?
- ... Assim seja.
Geraldus eleva o xizas no ar e perfura o pescoço de Viçosus, que fica no chão a contorcer-se, enquanto um liquido verde acastanhado lhe sai do pescoço. Geraldus larga o xizas e volta-se para agradecer a quem o ajudou, mas essa pessoa já não se encontrava lá. Ao sair, deu de caras com Juristus, que tinha sido aprisionado na base do edifício.
- Geraldus, o que é que se passou?
- Sei lá, fizeram me uma emboscada. Fui salvo por aquele gajo misterioso, o Gominhos. O que é que te fizeram?
- Disseram-me que tinham umas gajas na cave e eu fui ver. Sabes como é, gajas...
- Pois, estes guardas jogam sujo, então dizer a um homem que havia gajas. È de muito mau tom.
- Nem mais.
- Mas como é que saíste?
- Comecei a versar sobre a personalidade jurídica de um feto às 2 semanas. E eles acabaram por se suicidar.
- Vamos embora, vamos chamar o Menditus e vamos ao Coliseu, a ver-se conseguimos soltar o Salvadorus.
Foram ter com Menditus e seguiram para o Coliseu. Os combates já decorriam à algum tempo, e estava quase na hora de Gominhos lutar. O público aplaudia de pé e pedia a sua presença na arena e César, aproveitando as boas graças, ia guardar o combate para o fim. Sentado na sua cadeira imperial, César recebeu um toque nas costas. Era Viçosus.
- César... – Diz Viçosus, cuspindo sangue.
- Por César! Quero dizer, por mim! O que é que se passou contigo?
- O Geraldus escapou, o Juristus também...
- Maldição! Mas como, estava tudo bem planeado!
- Gominhos...
- Gominhos?
- Ele apareceu lá e salvou-os...
César engole e seco e, ao voltar-se para a bancada, vê a chegada de Juristus, Menditus, a sua esposa Vénus, Geraldus, Edgar e Gaius. César bate na mesa e vira-a ao contrário.
- Este Gominhos vai pagar-mas! Apresentador!
- Sim, César...
- É isto que vais fazer!
E o Imperador começa a dar um plano detalhadíssimo e aparentemente infalível, para ser executado de imediato. Quase de seguida, vários guardas cercam Menditus e os seus companheiros, levando-os para o calabouço onde estava Salvadorus.
- Raios! – Grita Menditus.
- E agora, o que fazemos? – Pergunta Geraldus.
- Não sei, mas temos de sair daqui.- Diz Juristus. – Como é que o Viçosus sobreviveu?!
- Não sei mesmo... – Responde Geraldus.
- Ouçam... – Diz Salvadorus. – O apresentador está a anunciar o próximo combate.
Lá fora, nas bancadas, a população estava ao rubro.
- E agora! – Grita o anunciador. – O combate da noite... O que vocês estavam à espera: Gominhos! Sem armas, sem escudo, acorrentado, descalço, de olhos vendados! Contra vinte elementos da guarda de César!
O público vaia violentamente. César dá ordem para o combate começar e surge Gominhos, tal e qual como o apresentador tinha anunciado.
- Temos de ajudá-lo! – Grita Geraldus. – Ele salvou a minha vida!
- E a minha também. – Diz Juristus.
- Temos mesmo que sair daqui. – Diz Salvadorus. – Já não como à umas horas, estava mesmo a apetecer-me um geladinho!
- Mas como é que vamos sair daqui? – Pergunta Gaius.
- Edgar, - Diz Menditus. – Não podes fazer uma daquela tuas magias “oh si cariño” e mais não sei quê?
- Não tenho ingredientes, Menditus.
- Raios partam.
Geraldus encosta a cabeça à grade e vê uma das amantes de César a passar. Volta a cara para dentro da sela e vê a mulher de Menditus a massajar-lhe o pescoço.
- A não ser que...
- O quê? – Pergunta Juristus.
- Fazias o quê ao Menditus? – Grita Geraldus, olhando para a esposa ao Menditus. – Oh Vénus, ela está aqui a dizer que comia o Menditus todito, que por ele até aprendia a ler!
- O quê? – Pergunta a amante de César.
- E mais! Xi, Vénus, ele diz que o Menditus está mal casado, e que vai pedir ao César para ele ser escravo dela, para ele ser o macho alfa dela!
A esposa de Menditus levanta-se e anda sensualmente, como é seu hábito, através da sela e pergunta, calmamente:
- O que é que disseste?
- Ela disse mesmo aquilo tudo. E chamou-te gorda.
- Uhhhhhhh. – Dizem todos.
- Geraldus, não faças isso. Pára Geraldus. – Diz Menditus. – Não sabes o que estás a fazer.
- Vénus, ela diz que já beijou o Menditus...
Vénus arranca as grades e corre em direcção à amante de César-
- Vamos agora. – Grita Salvadorus.
Entrentanto, Vénus já tinha agarrado a amante de César e pendurado-a no tecto com umas correntes.
- Vamos, minha sensual e mortífera esposa! – Diz Menditus.
- Vai andando meu amor, deixa-me divertir-me aqui um bocadinho com ela. Eu já vos apanho.
Ao subirem a rampa para o Coliseu ainda conseguiam ouvir os gritos de dor e sofrimento da pobre. Quando conseguem perceber o que se passa na arena, vêem Gominhos atado, completamente ensanguentado, enquanto era espancado violentamente pelos guardas de César, para gáudio deste.
- Vamos! – Salvadorus distribui espadas por todos, que começam a dividir os guardas e em grupos mais pequenos.
Finalmente conseguem que os guardas larguem Gominhos. Geraldus aproxima-se dele com uma espada extra.
- Consegues lutar?!
- Acho que sim... – Diz Gominhos, enquanto limpa um bocado de sangue do peito.
- Esse peito está mau! Achas que consegues? Por isso é que o Plínio, com aqueles pelos todos, não sofria muito...
Gominhos pegou na espada, levantou-se e começou a lutar, para a loucura do povo. César estava furioso.
- O que é que se está a passar! Mais guardas, vão, vão! E soltem os animais.
Lá em baixo eles iam despachando os oponentes um por um, até ao último cair redondo, no meio da arena. O público explode de contentamento, até César os mandar calar.
- Silêncio! Silêncio. Tu! Tu1 – Diz César, apontando para Gominhos. – Quem és tu para me desafiar? Quem és tu para desafiar um imperador? Quem és tu para desafiar um Deus?
Gominhos tira a máscara.
- Sou um Gladiador.
Era Plínio Plagius. O público não o conheceu de imediato. Tinha feito a barba e rapado o corpo, mas depois de alguns segundos já toda a gente gritava o seu nome, como nunca antes tinham feito.
Geraldus e os restantes companheiros correram a abraçá-lo e a ajudá-lo, pois ele estava bastante ferido. Saíram da arena, Menditus trouxe a sua esposa, que ainda queria brincar um bocadinho mais com a rameira, e abandonaram o Coliseu pelas traseiras, rumo à casa de campo de Geraldus.
Não sabiam o que se iria passar agora. Mas sabiam que não podiam voltar tão cedo a Roma. Pelo menos sozinhos... Pouco interessava, pois Plínio estava vivo.

XXVII - Magni Nominis Umbra

Com Salvadorus livre das obrigações imperiais, a biblioteca de Menditus estava sempre cheia de pessoas prontas para ajudar. Salvadorus tinha bom fundo, mas muitas vezes as suas boas intenções davam maus resultados. Ao tentar tirar uma caixa vazia do topo de umas estantes, Salvadorus, em vez de usar o escadote, tentou escalar as prateleiras, acabando por deixá-las irremediavelmente entortadas.
- Este material é muito fraquinho, isto não aguenta nada. Se nem um fino exemplar da raça masculina isto aguenta, vai aguentar o quê? – Pergunta Salvadorus, perante o olhar incrédulo dos presentes.
Salvadorus era também famoso por espatifar carroças, seja porque está à procura de lugares para a estacionar ou porque perde o controlo desta em curvas mais apertadas. Já Plínio à muito tempo que não apanhava uma multa. Consta que os videntes de Roma pressagiavam que algo mal estava a acontecer, porque estavam a mexer com a ordem natural das coisas.
Plínio andava ocupado durante as manhãs a organizar a sua fundação, perante a incredulidade de Geraldus. Com a fundação de manhã e as lutas à tarde, Plínio só trabalhava à noite, fazendo com que Menditus considerasse a contratação de uma colaboradora, mas o facto do sangue ser muito difícil de raspar da carpete da biblioteca fazia com que ele desistisse rapidamente da ideia, e além disso ainda se encontravam, de vez em quando, uns ossos de ex-colaboradoras atrás de alguns livros.
Geraldus, por sua vez, andava embeiçado por uma emigrante da zona da Helvetia, que morava sozinha em Roma. Geraldus, através do MSN, algo que mais ninguém sabia o que era, conseguiu engatá-la, ela que vinha de uma relação falhada com um Minotauro. O treinador de Plínio andava tão entusiasmado com isto que até tinha comprado uns bilhetes para ele e ela irem assistir às lutas no Coliseu.
- Mas, oh Geraldus, tu já compraste os bilhetes? – Pergunta Menditus.
- Já, porquê?
- Então, habituas mal a rapariga, olha se ela só sai contigo por causa da tua generosidade?
- Não tinha pensado nisso...
- E se ela se aproveita de ti?
- Mas...
- Então e se ela não gosta de receber presentes?
A esta altura Geraldus já estava sentado com as mãos na cabeça, a maldizer a sua vida.
- O que é que eu fui fazer? – Pergunta Geraldus, desesperado.
- Deixa lá estar. – Diz Salvadorus. – Já está, já está. Dás-lhe os bilhetes e pronto!
- Mas não devia ter comprado! Ainda por cima ficaram mais caros porque mandei vir por cavalo expresso! Ela vai pensar que sou estúpido.
- Mais vale agora do que depois. – Diz Plínio.
- Oh Geraldus, esquece lá isso, vai com ela e diverte-te, ofereces-lhe os bilhetes e mais nada. – Diz Menditus.
- Não. Não ofereço. Não vou.
- Vai lá! – Diz Plínio.
- Se for, compro os bilhetes outra vez. Alguém quer?
- Eu vou estar na arena, eu não preciso.
- Oh Geraldus, e se tu fingisses que compravas lá os bilhetes, e ela te desse o dinheiro?
- Não dá...
- Qual é o mal? – Pergunta Salvadorus. – Até podias dar lhe os bilhetes e dizer “olha, são 20 sestércios”.
- Que mau aspecto! – Diz Geraldus. – Que estúpido!
- Agora vai ser o dia todo nisto... – Diz Menditus a Salvadorus.
- E se eu enterrar os bilhetes no quintal? Eu enterro os bilhetes e daqui a uns milhares de anos alguém os encontra! É um tesouro arqueológico!
- E se te enterrássemos a ti e aos teus dramas? – Sugere Plínio. – Isso sim daria um belo tesouro, mas mais do foro psicológico.
- Quero lá saber, não vou.
Olharam todos uns para os outros e foi cada um à sua vida, ficando Geraldus sentado a falar sozinho. Salvadorus ia encontrar-se com Juristus na sala de reuniões, e Menditus e Plínio iam tratar da fundação. Juristus chegou e dirigiu-se para a sala de reuniões.
- Então, grande Salvadorus.
- Esse grande é num sentido humano e heróico, não é numa de eu ser gordo ou isso pois não?
- Não.
- Ah bom.
- Então, diz-me, Salvadorus, que planos tens?
- Bem, nesta missão terás de ser eficaz e eficiente.
- Mas há diferença?
- Há.
- Então?
- Eu passo a explicar: Imagina uma laranjeira a três quilómetros de Roma.
- Uma laranjeira a três quilómetros de Roma?
- Não. É um mau exemplo. Imagina um urso, uma carroça e três ou quatro pratos de sopa.
- O quê?
- Não, também não é isso. Imagina um pássaro. Tás a ver um pássaro?
- Sim.
- Não tem nada a ver. Agora imagina um cão.
- Salvadorus...
- Ah, bom, eficaz é atingires os objectivos a que te propuseste, eficiente é atingi-los de maneira rápida e de forma a que aproveites da melhor forma os recursos disponíveis.
- Percebi. Já vi que chegaste onde chegaste não só pelo teu aspecto.
- Obrigado, todos dizem o mesmo. Bem, tu vais aproximar-te de César e vigiá-lo. Vais ver se ele tem algumas desconfianças e coisas assim.
- Certo.
- E avisas nos sempre que ele estiver perto de nós ou a tramar alguma.
- Certo. Assim o farei.
Juristus conseguiu com facilidade o lugar de assessor de César, devido às fortes remodelações no seio do império Romano e ao seu recheado currículo. De inicio pensaram em colocar Geraldus nessa posição, mas a sua rivalidade com um ex gestor de operações, actual assessor do Império dinamitava esse plano.
Entretanto Menditus e Plínio andavam à procura de um lugar para estabelecer a fundação, agora que todos os trâmites legais já tinham sido tratados, com a ajuda de Juristus.
- Este sítio parece-me bem... Tem um ar acolhedor, uma entrada grande, é espaçoso...
- Plínio, isso é uma toca de um urso.
- Ah. Está bem, vamos continuar a procurar.
- E que tal este prédio? Está um bocado mau por fora, mas por dentro parece em condições. E que tal se ficássemos por aqui?
- Parece-me excelente Menditus.
- Já pensaste nas actividades que vamos fazer para angariar fundos?
- Ainda não... Tenho mesmo de pensar nisso.
Juristus já se encontrava na companhia de César, depois de este ter aceite a sua admissão sem grandes dificuldades.
- Hmmm... Este Plínio tem de ser tratado... Mas o público está do lado dele... E os meus níveis de popularidade estão muito em baixo... Tenho de o afastar do Coliseu, mas como? – Pergunta César.
- E se proibisse a presença dele no Coliseu? – Sugere um dos seus assessores. – Não se esqueça que ele tem o estatuto de gladiador-estudante. Podemos queimá-lo por aí.
Juristus ouvia com toda a atenção.
- É isso! – Diz César, não escondendo o seu contentamento, - Proibimos a entrada em que tiver esse malfadado estatudo!
- Eu também sou contra o estatuto. – Diz uma voz vinda da sombra.
- Viçosus... – Diz César. – Meu fiel e espinhoso assessor... Preciso de ti nesta hora.
- Descanse, César, estatutos é comigo. Não há estatuto.
- Muito bem, quero isto aplicado já para a noite de hoje. – Diz César. – Juristus, ficas encarregado de transmitir aos representantes do Plínio a minha decisão.
- Assim o farei César.
Juristus deslocou à biblioteca de Menditus e anunciou as más notícias a todos, que ficaram em choque.
- Mas sem lutares no Coliseu não vamos conseguir levar avante o nosso plano. – Diz Salvadorus, desesperado.
- Isto está muito mau mesmo... – Diz Geraldus.
- Eu ainda tentei interceder junto de César, - Acrescenta Juristus. – Mas ele estava decidido. Aquele Viçosus é pior que as cobras.
- Viçosus... Então ele voltou... – Diz Geraldus, desconfiado. – Eu sabia que este momento ia chegar.
- Bem, então vocês vão ao Coliseu não é? – Pergunta Plínio.
- Quer dizer, nós temos bilhetes, mas sem ti não tem piada ir. – Diz Gaius.
- Esqueçam-me por uns momentos. Eu tenho de fazer umas coisas. Vão vocês, não desperdicem os bilhetes.
- Se o dizes...
E assim o fizeram. Foram todos para o Coliseu, inclusive o primo de Geraldus, que este escolheu levar em vez do seu engate. Foram todos cabisbaixos, não era a mesma coisa ir ver as lutas sem o seu amigo peludinho.
Chegaram ao Coliseu, estava cheio como sempre, com o povo sequioso de sangue e carnificina. Desde cedo surgiram os primeiros cantos por Plínio, mas nada, o apresentador nunca mencionou o seu nome em nenhum dos combates. A sessão decorria com normalidade, especialmente quando eles ignoravam Geraldus, que se escondia atrás do primo na tentativa de não ser visto pelo seu antigo engate.
- Geraldus, e que tal, não sei, se parasses quieto? – Pergunta Edgar.
- E se a gaja me vê?
- Se te vir, azar, mas duvido, não sais de trás do teu primo! – Diz Menditus.
- Eu já sei o que eu vou fazer, vou desligar para sempre o meu telemóvel e nunca mais falo com ela.
- Vais desligar o teu quê? – Pergunta Menditus.
- Não sei. O que é que eu disse?
- Telemóvel ou lá o que foi.
- Onde é que eu fui buscar isso? – Pergunta Geraldus, confuso. – Quero lá saber, não quero é falar mais com ela.
- Vá, agora sentem-se que vai haver só mais uma luta e depois podemos ir para casa e confortar o pobre Plínio... – Diz Edgar.
O apresentador aproxima-se da varanda e olha para as suas notas.
- Agora, povo do Coliseu, temos um estreante... Vai lutar contra três escravos do Burundi, um técnico de contas e um funcionário das finanças... Ele é... Gominhos!
- Gominhos? – Pergunta Geraldus. – Esse nome faz-me lembrar alguma coisa...Uma vez íamos numa carroça, lembras-te Edgar? Rimo-nos muito por causa de uns gominhos... O que é que era?
- Faz-me lembrar qualquer coisa faz, agora o quê... – Diz Edgar.
- Também me recordo de qualquer coisa. – Acrescenta Gaius.
- Vamos lá ver o combate, pode ser que se lembrem depois. – Diz Menditus.
O gladiador entra na arena, com uma vistosa armadura e uma mascara... De urso. O combate começa e o gladiador despacha os adversários com uma limpeza nunca antes vista. Nem um pouco de sangue jorrou para a sua armadura. O público aplaudia de pé e gritava “Gominhos! Gominhos!”, e este agradecia, perante o olhar atento de César.
- Curioso... – Observa César. – Viçosus, chama este tal de Gominhos aos meus aposentos, quero falar com ele.
- Assim o farei, oh César.
Gominhos saiu da arena rapidamente, apesar de o povo ainda chamar por ele, mas foi rapidamente interceptado por Viçosus, que o acompanhou aos aposentos de César.
- Gladiador... Que máscara tão... peculiar.
- Foi uma oferta.
- E eu tenho uma oferta para ti. Glória. Poder. Dinheiro.
- Mulheres?
- Se fazes questão... Eu não disse nada porque, pela tua maneira de estar, podias ficar ofendido.
- Mas o que pretendes, oh grande César? – Diz Gominhos, enquanto se ajoelhava.
- Quero que mates Plínio Plagius, o Gladiador. E traz-me uma prova da sua morte.
- Será feita a sua vontade César.
- Gladiador... Porque é que estás a coçar os braços?
- Por nada... Por nada!
- Estás um bocado avermelhado...
- Não é nada, não é nada. Trarei a prova ainda esta noite.
E abandonou os aposentos de César. O Coliseu já se encontrava vazio. Menditus e os restantes companheiros já se preparavam para entrar na biblioteca, onde iriam contar a Plínio as novidades. Ao entrarem, encontraram um pequeno rio de sangue.
- Minha Deusa, quem é que mataste desta vez? Eu não contratei nenhuma mulher! E além disso, ninguém olhou para mim hoje! Diz lá onde está o corpo.... Está no tecto outra vez? Ou, não me digas que crucificaste outra mulher. Não, por favor, diz-me que não a desmembraste como a última e vais nos fazer jogar ao quente e frio para encontrá-la?
- Não, meu macho alfa, eu não matei ninguém. Desta vez.
- A sério? – Pergunta Edgar.
- Então de onde vem este sangue? – Pergunta Gaius.
Olharam uns para os outros e seguiram o rasto de sangue, numa correria desenfreada. Ao chegarem à secção de filosofia encontraram a espada de Plínio, a sua toga e alguns livros de filosofia, espalhados pelo chão. E, pior... Restos de pêlos.
- Vejam isto... – Diz Menditus. – Fédon, de Platão... Aberto no II capítulo...
Salvadorus ainda correu para as traseiras, para ver se encontrava alguém, mas em vão. A verdade era avassaladora: Plínio Plagius, o Gladiador, tinha sido assassinado.